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PRIMAVERA SOMBRIA

20/03/2020

Fabricio Corsaletti

Sempre que a coisa aperta ou algo ruim está prestes a acontecer, sinto necessidade de me encontrar com o Frango, meu amigo de infância que hoje mora em Jundiaí. Ele me conhece bastante, tem um ouvido de ouro e em geral consegue me tranquilizar.

Mas dessa vez o problema não era pessoal, ou não era só pessoal. Ando revoltado e deprimido com a possibilidade de viver num país governado por um fascista. (Nunca escrevo sobre política, não entendo de política, porém o nível da discussão baixou a tal ponto que eu também vou reclamar.) Os valores democráticos, que eu julgava apenas um ponto de partida, são agora um longínquo ponto de chegada. Pobre Frango, como poderia me ajudar?

Mesmo assim valeu a pena passar o sábado com ele e a Dani, sua mulher, seu filho Pedro e sua sogra Cristina, comendo churrasco e bebendo cerveja (e depois Fernet com Coca-Cola, e depois vinho tinto), no primeiro dia da primavera, sob um céu de brigadeiro, no quintal da sua casa nos arredores da cidade. Parecia o fim de alguma coisa. Foi como se estivéssemos nos despedindo. Choramos muito ouvindo Legião Urbana, enquanto o Frango ia recordando os melhores momentos da nossa adolescência selvagem.

Fui tomado por uma grande nostalgia de certas tardes envenenadas com tabaco e cloro de piscina — pernas se esfregando embaixo d’água, beijos com gosto de picanha, biquínis incestuosos sob o sol. Primas. Amigas. Tive uma única namorada antes dos vinte. Não durou uma semana. Pâmela. Olhos doces e pele caramelo. Em quem será que ela vai votar?

Com Pedro, de dez anos, conversei sobre cavalos. Cores, raças, idade certa pra domar. Me contou que tem dois pangarés e um manga-larga na fazenda do avô. Com a Dani, que é enfermeira, conversei sobre doenças, outro assunto que me interessa. Pedi que ela me desse detalhes da sua rotina no hospital. Foi nojento e maravilhoso. Cristina, por sua vez, confessou que era viciada em videogame, que aprendeu a jogar com o neto.

No dia seguinte peguei o trem de volta pra São Paulo. Mais céu azul através das janelas, barracos pendurados nos barrancos, um vendedor de Skol e pururuca (às nove da manhã!), um evangélico pregando contra homossexuais. Antes de chegar na estação da Luz, terminei a leitura de Asco, novela do salvadorenho Horacio Castellanos Moya que diz muito sobre o Brasil de hoje e, espero estar enganado, de amanhã.

Asco, decepção e desespero.

Que esta crônica envelheça depressa.

Que se transforme logo em passado a origem deste mal-estar.

 

texto publicado anteriormente na Folha de S. Paulo em 19 de outubro de 2018

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