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PARTIDAS EM TRÊS TEMPOS

10/10/2020

Vários Autores

Leia a seguir três contos curtos de Nicole Alfieri, Flavia Castro e Angélica Bevilacqua – participantes das oficinas de escrita criativa de Noemi Jaffe na Escrevedeira. Os textos foram produzidos a partir do trabalho sobre “ponto cego” na escrita, com base num ensaio de Javier Cercas, para quem um bom romance é aquele que mantém o leitor em estado de ambiguidade, fazendo perguntas mais do que oferecendo respostas. A proposta de Noemi foi a escrita de um conto narrando uma partida desportiva com ênfase no placar, mas de maneira que o leitor não saiba qual o resultado final. Divirtam-se!

 

PERDOA-TE OU TE DEVORO

Nicole Alfieri

 

Net. O vulto invade a quadra ainda mais veloz, ainda mais vulto, e desliza com a bola desfalecida para fora. Falta muito pouco, cada vez mais. O peso de quinze mil vozes atrai outra bola para fora do bolso feito um foguete contra a ação da gravidade, o planeta puxa puxa puxa, reclamando que a natureza de tudo é ficar, até que, enfim: o silêncio.

O sol é ela e mais uma, e todo mundo sabe o que acontece quando duas estrelas colidem. Ainda assim querem ver de perto, os ingressos para o Coliseu chegam à faixa dos milhares de dólares, por todos os lados o alarde da despedida das quadras diante da jovem revelação, vai sucumbir!, vai superar?, uma win-win situation para os amantes do tênis, não é mesmo?, a repórter sorri, como se dois corpos pudessem ocupar um mesmo espaço.

Saca de novo. Se ao invés disso pensasse, pensaria que fora da quadra os gritos engasgados pesam mais que a manifestação livre, mas dentro da quadra não. O silêncio aprisiona nas arquibancadas as cabeças reviradas, os estômagos acelerados, os corações fundidos, exatamente onde devem ficar.

O patrocinador é um pálido ponto azul; ele, o Duque e a Duquesa, a taça e suas asinhas diminutas que ela não ergue há três temporadas, desviada pelo joelho e a juventude da estrela-Moça, mais rápida, mais eficiente e até mais bonita, como as manchetes insinuam com adjetivos que escapam para dentro ou para fora do texto. O corpo celeste é esguio, a cabeça com fios dourados e nada pálidos querendo cegar as vistas cansadas. A bola vai e vêm, vão e vem as bocas sedentas.

Os românticos chamam de passagem de bastão, os médicos de desgaste da patela, os sensacionalistas é que dão nome aos bois. Velha, contundida, desequilibrada, abalada. O jornalismo esportivo não passa de um tabloide que se leva a sério às custas de dados técnicos: títulos, velocidade do saque, cirurgias, aces, anos de carreira celebrados só depois da página dois, ela pensa sem pensar, identificando a posição da cabeça resplandecente à sua frente e cutucando a bola na direção oposta como quem remove um pêlo da trama do casaco.

Os aplausos são rugidos da plateia de leões, ansiosos porque falta tão pouco para engolir qualquer uma das gladiadoras, o matchpoint é da velha apagada, mas o saque é da outra, e ela amaldiçoa o joelho em chamas, o pulmão desesperado, o velocímetro que prenuncia um saque incinerante. Ela mesma quer estraçalhar as coxas frescas e promissoras, roer até os ossos, e ao mesmo tempo abraçar o ódio que sente de cada uma das suas células envelhecidas, como perdoar o corpo, como perdoar o tempo, ela não se pergunta.

O juiz controla os rugidos e ela não enxerga nada, focada na esfinge ensolarada diante dela, a bola ricocheteando entre o chão e a mão, o chão e a mão e enfim rasgando o ar, e antes mesmo de receber o saque ela sabe que só tem uma chance, a chance de a jovem também não se perdoar, que a única chance de quem não se perdoa é, de novo, o canto indefeso, a jovem em rota de colisão, um tapa com luva de pelica, os leões prestes a escapar das jaulas.

 

MORTE SÚBITA

Angélica Bevilacqua

 

Cada músculo do seu corpo treme e se contrai no fim da prorrogação. Campeonato nacional, partida decisiva, zero a zero. Uma fisgadinha na virilha, a garganta seca, até as panturrilhas pedem água. Despeja a água no rosto como benção, agita o corte ousado do cabelo espalhando nuvens de gotículas, se joga no gramado ao lado dos companheiros avaliando a distância entre a marca e o gol, as traves que parecem ter encolhido, olhos muito abertos como se fossem engolir a torcida, nem pensar no contrário, ser engolido. Na última disputa por pênaltis o goleiro veio até ele encarando, sussurrando conheço o seu ângulo, seu filho da puta, tô sabendo da trave que tu pegou contra o Botafogo, sei pra onde tu vai chutar. A prontidão na resposta olho no olho: a tua que tá nas rua. E gooool.

Mas não tem por onde, ele sabe que qualquer um dos vinte e dois já terá sido escolhido pelo acaso para selar a vitória ou entregá-la ao adversário, cada chuteira, cada meia colada na perna, cada camisa suja, o corpo lá dentro sabendo desde as unhas dos pés até o último toco de cabelo que aquilo é sim um corredor da morte: morrer num clube chinfrim ou ser alçado ao céu do futebol, brilhar entre as estrelas na Europa. Já foi sondado pela Juve de Torino, repete o nome, Djuve, biancchi e neri como o coração corinthiano, precisa aprender a pronunciar buongiorno, bondjorno, uma agulhada na panturrilha, passa a mão massageando, nada para se preocupar. E lá, sim, vai jogar o tal de calcio, caltchio como diz o pai, afrontare o goleiro, não, o portiere; o corner será o calcio d’angolo, o técnico o alenatore, mas a aporrinhação vai ser igual: não olha pra bola, presta atenção no adversário, não fica olhando pra bandeirinha, eu sei que ela é linda, mas se concentra no gol, marcar o gol. Tudo bem, está preparado, só falta aprender o palavrão italiano.

A fila vai se formando, o juiz orienta, o técnico mandando ficar na rabeira, claro, ele sabe que é um batedor refinado, pode vir a ser o melhor artilheiro da sua geração, ainda é muito jovem, e o pai gritando da arquibancada, apontando a medalha, aprendeu com ele a chamar de morte súbita, não tem nada errado com esse nome, não, filho, ninguém morre, quem morre é a partida. Sim, beija a medalhinha pendurada no peito, beijará outra vez antes do chute, discretíssimo, antes de grudar o olho no olhar errante do goleiro, antes da finta, se vai pra direita ou pra esquerda, torcer sem pensar a cintura tão rápida que o coitado vai ficar mais tonto do que já está, engolir todos aqueles gols indefensáveis. Se posiciona diante da marca de cal, se abaixa, percebe a depressão bem no meio da mancha branca, hummm, aquilo pode desviar o chute, ajeita a bola mais para a beiradinha, espera não ser visto.

O juiz apita, silêncio absoluto no estádio lotado. A morte, essa que pega a gente, só vem se ele deixar.

 

AQUECIMENTO

Flávia Castro

 

Deve ter sido para castigar essa ideia-de-mula do técnico, pra que isso, gente, Titulares contra Reservas, no campo do clube, aberto a quem quisesse ver. Ninguém imaginaria essa frustração lotada, menos ainda um público daqueles em pleno domingo de clássicos futebolísticos na TV. Aos Titulares, os nomes estampados em letras maiúsculas nas camisas, aos Reservas, os números. E alguns números chegaram até atrasados, depois que o jogo, pelo calor ou pelos acontecimentos, evaporava mais do que suava, três apitos iniciais de saída de bola, três gols do time Reserva. As arquibancadas quase cheias, as famílias a testemunharem os Titulares, os melhores da cidade, perderem assim, de lavada, para aqueles que tinham perdido, de lavada, a chance de ter seus nomes em caixa alta. Tá tudo certo, Caique, mas se é pra ser reserva de um timezinho mequetrefe desses, você vai é trabalhar comigo na mercearia ou de auxiliar administrativo lá na prefeitura. E a mãe do Caique nem foi ao jogo, pelo filho reserva não iria; a surpresa foi mesmo o prefeito, sempre tão ocupado, dessa única vez apareceu por lá. Achou que passaria rapidinho, o microfone, o palavrório, o apito inicial e um até breve, mas havia um quê de magnético no jogo. Faltava uma semana para o campeonato estadual e com a classificação inédita veio o patrocínio, a faixa de oito metros na entrada da cidade, a primeira-dama da faixa, a convencer o marido, o prefeito, que com esse menino aí, na pior das hipóteses, o time seria semifinalista. Foi ela quem disse logo cedo, por trás dos óculos cravejados de strass, apareça lá, meu bem, tire umas fotos com os mais arrumadinhos, mas não esqueça do Artilheiro, ah, aquele menino, que graça que é e, ainda, talentoso.

Não fez nenhum gol, o Artilheiro, e já estávamos lá pelos trinta e dois minutos de um segundo tempo arrastado também por suas chuteiras. Tudo bem que seus companheiros, entre atropelos e assombros, recuperavam três dos seis gols marcados até ali, empate, afinal, mas ele parecia deslocado daquele purgatório. Vibrava contido por todos os gols, de ambos os lados, como se não fosse esperado dele todo o protagonismo do jogo. Não percebia ou, talvez, ignorasse as piadas que surgiam, o prefeito ainda sem saber se publicaria a foto com ele, a primeira-dama a tirar outras tantas, ele vagando pela grande área adversária: parecia enfeitiçado ou elevado. E não pelas câmeras ou pelos olhos das mães, tias e primas dos colegas, tampouco por alguma coisa que tivesse comido ou bebido, embora a todo o momento espalmasse a barriga como quem sente no ventre a vibração das doze badaladas do sino; a igreja da matriz, meio-dia. E não se pode dizer que aquilo era falta de atenção, porque se tinha uma coisa que fazia era analisar cada detalhe do campo, os buracos, as pedras recolhidas atrás das traves, a placa com a frase incompleta “ao nosso” pendurada de cabeça para baixo na entrada do vestiário. Caminhava como se fosse um holograma e não uma pessoa, menos ainda um artilheiro daquele calibre, alheio à trajetória da bola que cruzava seu passeio vez ou outra; seus braços apoiados sobre a cintura, sim-tá-tranquilo-vambora-jogar, a concentração de quem desvenda mais do que enfrenta aquilo tudo, até a bola. Uma vergonha, a bola; não condizia com o investimento nas camisas sport dry, o ônibus fretado, ar–condicionado, estampa de triângulos coloridos e a promessa de novas traves, quem sabe até um gramado no lugar daquela terra-cor-de-telha, se vencessem o campeonato. Craquelada, acinzentada e com um dos pentágonos de couro – bem onde se lia a marca – pendurado por apenas um dos lados, flamulava a cada parábola no ar, ricocheteava a cada encontro com o solo, às vezes parecia uma franja lânguida, outras uma língua de fora, debochada e cruel. E voava mais do que rolava no jogo, aérea e encantada, como o Artilheiro. Se aproximava, mas parecia decidida a não o tocar e aquela já era a terceira bola. As outras duas, isoladas por tiros de meta dos Titulares nos primeiros dezoito minutos, ainda não tinham sido recuperadas (dois grupos de pirralhos, entretanto, partiram em suas buscas). É justo concordar com o técnico, ainda que em outras palavras, não há ciência capaz de explicar a altitude celestial alcançada por aquelas bolas.

As crianças, sagradas que são, trepavam nos degraus de cimento, alheias àquele acontecimento, a subir e encontrar os amigos, arremessando papel, modelando aviões das embalagens de pipoca, jogando gude de fluorescência esmeralda. Sorriam e iluminavam-se em meio às absortas expressões adultas a cada voo da bola, uma impaciência apertada contra as latas de cerveja quente. Pipoca fria, pedaços de pão e salsicha eram agora atirados por toda parte e a fisionomia enrugada do técnico parecia espremê-lo de fora para dentro, é só um treinamento de rotina, pô, ele repetia. Nem mesmo os Titulares acreditavam nisso e, também, não elaboravam hipóteses; mantinham-se distantes uns dos outros, no máximo corridinhas para frente e para trás, acertavam poucos passes, pareciam pebolim. E assim eram volteados, ultrapassados e humilhados pela ginga inesperada do reserva Caique. Transpirava entre os relâmpagos em pente 3mm nas laterais do cabelo, um gol, recolhia o lábio superior, a engolir as gotas grossas de suor que lhe escorriam pelo buço; os olhos travados na bola e na trave, dois gols, trave-bola, três gols, como se nem os outros jogadores existissem. Gritava, e tudo que se via era seu pomo-de-adão a subir e descer muito rápido, vamos-nós-vamos-nós-veeem-19, vem 23, chamando os outros Reservas. Suas chuteiras e a bola imantadas, e ele a trazia lá de longe, desde a grande área dos Reservas, atravessando as marcações – mais imaginárias do que reais, dada a precariedade do campo – com o vigor que driblava os jogadores, a correr sem nem olhar pro chão, ziguezaguear pelo meio-de-campo, acompanhado pela arquibancada, boquiaberta, buço seco, quarenta e três do segundo tempo. Só precisava chutar para o gol, com um, só mais um, o quarto dele na partida, não precisaria de mais nada. Eis que ali, bem a sua frente, estava o Artilheiro.

O motivo pelo qual o Artilheiro se encontrava na grande área dos Titulares não é conhecido, mas estava ali, recolhido como se zagueiro fosse. As duas pernas fincadas na terra, paralelas às traves, uma miragem ou um monumento, Caique não saberia o quê mesmo tinha aquele moleque. E tinha; mais do que a sorte de ter namorado a filha do técnico, um chute tão potente, um porte respeitável e os cabelos volumosos como o mar em fúria. O olhar sereno por entre as sobrancelhas pretas e grossas, a postura de quem é levado e simplesmente aceita seu destino. Caique tentou um drible, a saída para a direita, esquerda, por debaixo das pernas, todas fracassadas, parecia que, a partir dali, não avançaria mais. Um a examinar o outro. O chute de Caique na canela do Artilheiro foi um erro manifesto, o apito de falta, acréscimo de quentura a aquecer ainda mais o corpo, anestesiar o incômodo que não pode ser compreendido. Que merda é essa, agora?, perguntou o Artilheiro ao colega e esse foi um dos poucos momentos em que Caique sentiu-se fraco.

O carro de som anunciando móveis usados em perfeito estado, o ecoar metálico das descargas dos ônibus na avenida e o zumbido das obras na pracinha sobrepunham-se a aliviar os últimos suspiros de um jogo quase-importante. O prefeito a falar qualquer coisa com o técnico, o técnico a invadir o campo com a rouquidão esperada para um jogo de rotina. Caique pede aos Reservas, pelo-amor-de-Deus, vistam seus números de volta, retomem suas posições, o jogo não terminou e, na arquibancada, os que não sucumbiram ao calor, levantam-se em atenção. O Artilheiro a encará-lo, quer ele mesmo cobrar a falta, reclina-se sobre a bola ajeitada no pé, uma língua ou uma franja. Caique a fixa, a fugir daquele olhar. O Artilheiro não só tem esse quê reconhecível, como é real e gigantesco, se afrontado de perto. O apito ressoa, a bola estoura dos pés do Artilheiro em uma triangulação perfeita, que atravessa o campo em chuteiras Titulares e, ao alcançar a grande área adversária, é devolvida ao Artilheiro, diante do gol. Caique chega ofegante e se entrepõe às traves. O chute explode contra o peito dele e o rebote é do Artilheiro enquanto o Reserva se refaz, chama por reforços que não aparecem e reclama uma falta que não existe. O juiz sinaliza a jogada que segue, mas o Artilheiro espera, prepara o lance: os dois se enfrentam e quase se enganam, a uma cotovelada de um enorme equívoco. Um grupo de meninos vem caminhando pelo meio da praça, cantando alguma cantiga religiosa, alternam-se segurando uma das bolas perdidas. Crianças e pombos não sentem o peso do tempo suspenso, o calor que faz um meio-dia vencido.

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