O COMEÇO DA BIOGRAFIA
07/11/2020Joselia Aguiar
Joselia Aguiar, jornalista, escritora e atual diretora da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, conta no texto a seguir um pouco das origens da biografia, como gênero literário. No próximo dia 10 de novembro, Joselia começa seu curso na Escrevedeira: Biografia: formas de contar a vida dos outros, que propõe um passeio pelo gênero biográfico, navegando pelas diversas possibilidades de sua escrita e por suas nuances. Boa leitura!
Não é incomum que leitores digam de uma biografia que se parece com um romance, dadas as peripécias do personagem retratado ou a fluência narrativa. Poucos se lembram de que a biografia é muito anterior ao romance. Primeiro os antigos fizeram biografias, depois desenvolveram a forma romanesca.
Nascida numa Antiguidade que cultivava a poesia e o teatro, a biografia praticada no Ocidente tampouco foi imaginada, de início, como um tipo de relato historiográfico. Quando Plutarco, Suetônio e Diógenes se dedicaram a narrar a vida de poetas e césares nos primeiros dois séculos da era cristã, era outra coisa que buscavam.
Nas primeiras páginas da vida de Alexandre, Plutarco esclarece que não escreve história, mas vidas. Notava uma particularidade desse procedimento: “Nem sempre as ações mais brilhantes mostram melhor as virtudes ou vícios. Muitas vezes, uma pequena coisa, a menor palavra, um gracejo, fazem ressaltar melhor um caráter”. O que Plutarco procurava, como não deixa dúvidas, consistia em “manifestações características da alma”.
Um biógrafo costuma ser bastante perguntado sobre o que deixou de fora do livro que escreveu ou se é possível dar conta dos acontecimentos da vida de alguém. O curioso é descobrir que, desde os antigos, existia já entre os dedicados ao ofício a consciência genuína dessa impossibilidade.
O mesmo Plutarco esclarece, antes que reclamem: “Dado o número infinito de fatos que constituem a matéria, limitamo-nos a pedir aos leitores que não nos censurem, se, em lugar de expor ampla e pormenorizadamente cada acontecimento, ou algum dos atos mais memoráveis, damos aqui, apenas, um simples sumário, da maior parte deles”.
As primeiras biografias estavam muito longe dos catataus, às vezes em muitos volumes, que saem hoje sobre famosos e anônimos. Os relatos daquele tempo costumam ser breves, e não há muito como saber as fontes, nem pelo texto, nem pelas notas de rodapé, inventadas muito posteriormente. Os textos de Plutarco & cia. se constituem como trabalhos memorialísticos, com resultado ficcional involuntário, numa época em que essas noções ainda não estavam postas.
Quanto à nota de rodapé, tem biografia própria: trata-se de uma história complexa que passa por cientistas e intelectuais de muitos campos, como Athanasius Kircher, jesuíta e matemático, séc. 17; Pierre Bayle, filósofo e dicionarista, séc. 18; Leopold von Ranke, o “inventor da história científica”, séc. 19.
Biografias usam hoje com abundância recursos literários; abarcam procedimentos da historiografia; adotam sem cerimônia a nota de rodapé. Como chegamos até aqui, aí são outros séculos de trajetória desse gênero que é campeão de leitores.
Retirei as citações de Plutarco do volume traduzido por Hélio Veja e publicado pela Ediouro nos anos 1980. No http://www.dominiopublico.gov.br/, você pode encontrar não somente este, mas outros trabalhos de Plutarco & cia. Sobre as notas de rodapé, vale conferir “The footnote: a curious history”, de Anthony Grafton.