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METABASEADO

10/12/2019

Hanita Bergmann

Neste bimestre, a oficina de escrita criativa de Noemi Jaffe teve como tema o encontro entre ficção e ciência. Hanita Bergmann, uma das participantes, foi incumbida de escrever um texto que tratasse de geologia. Abaixo, o resultado desse desafio.

METABASEADO

Parece um grande vômito das profundezas da terra, espesso, em jatos, vermelho e muito quente. O vermelho é o fogo, labaredas espessas de magma em convulsão explodem, incandescentes voam para cima, fogos de artifício sem ritmo, em gargarejo. Crostas cinza fosforescente na superfície do que imita um rio pelando, um rio gratinado de lava. Um vulcão ativo lembra uma pessoa engasgada, de pé com a cabeça virada prá cima, regurgitando; quando entra em erupção é muito forte, essa mesma pessoa vomitando tanto que escorre prá todo lado, desce pelo corpo, uma gosma grossa que passa e entra por todas curvas; a lava fervendo queima, derruba, invade, sufoca; constante e num ritmo só dela. Mas antes disso tem os gases, a boca de uma chaleira prestes a exalar do baixo profundo para o céu, a formação duma couve flor enorme, cinzenta, que não para de crescer e subir num céu enegrecido e as pessoas, as que estavam longe mas assim mesmo perto, ficam cobertas de cinzas, são fósseis ambulantes, uns zumbis. Maravilhoso de tão horrível.

Eu trouxe uma coisa prá você, sente essa areia; muito simples, com água parece cimento. Aqui, fazemos um cone, vamos alisar, mais água, dá uns tapinhas; água e tapinhas, nessa ordem. Agora, assim, cava o cume, vou abrir a lateral. Amasso o papel dentro, tô enfiando pela lateral. Joguei um fósforo, coloca a mão aqui, não tampa, só sente o calor. Viu, um calor molhado. Era assim que fazíamos na praia, todo dia, um vulcão, o menos nocivo dos vulcões; era o mais perto que podíamos chegar do fogo, no mar.

Salvei uma foto; Janice, 73 anos de idade, está num barco indo embora do Havaí porque a ilha mudou muito; mais violenta se sente insegura e decide partir. Do barco vê, pela única vez em sua estada de 35 anos na ilha, uma erupção do vulcão; chamas, lava fluindo para o mar. Janice diz que sente, então, que foi abençoada pela escolha certa; o vulcão sempre foi a pior das ameaças.

Existe um aspecto místico dos vulcões em todos os povos de todas as ilhas; o fogo arde nos espíritos, algumas pessoas até falam com os vulcões, acendem o cigarro no fogo que vem até elas. Vilarejos no pé dos vulcões – a terra é fertilizada pela lava vulcânica – não são avisados de antemão, os vulcões entram em erupção quando bem entendem e as pessoas continuam morando lá, convivem com a força da natureza, o perigo faz parte delas, da crença. Vulcanologistas ficam estirados no chão a 3.800m de altitude acima do mar; no ar rarefeito a respiração é truncada. O lago de lava pode explodir a qualquer momento e o vulcanologista diz calmamente que a atenção deve ser total, se um jato subir ele tem que desviar, ir pro lado, não correr de costas nem se abaixar; deve ficar com o olhar atento sem ser levado pela hipnose, sim é hipnotizante; assim: um passinho pro lado e a bola de fogo não cai na sua cabeça. O lago é enorme, uma imensidão, um vazio que você conhece.

A história do casal de franceses é essa: não conseguiram ser mais rápidos que os 160 km/h da velocidade do fluxo piroclástico; foram soterrados pela corrente fluída , veloz, do gás quente com cinzas e pedras; eram mais de 41 pessoas. Filmavam vulcões de muito perto – uma vida dedicada. Roupas de alumínio, astronautas improvisados, macacões térmicos. Elegeram, na vida, um pano de fundo: a brasa, o fogo, o rio vermelho de lava; tudo de perto, o calor na cara, a intensidade da massa espessa se contorcendo, descendo a montanha; acho que sinto a intensidade só em ver. Vem prá perto da lareira, coloque a cara aqui dentro, não vai se queimar – só sentir o ardor – preciso disso também agora. Um casal, eram um casal, uma combinação perfeita entre duas pessoas e uma intensidade compartilhada.

As roupas e o fundo vivo, uma colagem, não parecia real, as cores do amarelo ao vermelho, passando por todos tons de laranja, o ritmo; o contraste do alumínio com a lava, deles parados com o movimento do magma; parecia um filme e era um filme, um filme real. Dizem que o seu objetivo era registrar tudo de muito perto e, em nome dessa causa, não conseguiram prosseguir, morreram no processo, não foram rápidos o suficiente. Eu sei, nós sabemos, que o objetivo não era o registro e sim a experiência; o que expele também atrai, com a mesma intensidade. Por isso que o meu relato é tão difícil e tão pouco válido, só vejo a imagem, não estou lá; o resto -praticamente tudo – fica a cargo da imaginação, da sua e da minha.

O que mais posso falar? Você tá entendendo a dificuldade? O cheiro, você tem razão, nem pensei nisso, estamos quites, também não sei o cheiro que tem, leio que o vulcão libera enxofre e você sabe, cheiro de enxofre é igual a ovo podre. Depois deve ter cheiro de queimado porque tudo vira cinza, uma grande e espessa camada de cinzas que endurece e fossiliza. Eu tenho uma faca de obsidiana, comprei no Mexico; é um tipo de vidro vulcânico formado quando a lava esfria rapidamente: a pedra é super dura e o corte é preciso; usado em cirurgia, acho, de córnea.

Já se escreveu tanto sobre vulcões, como posso te explicar melhor? Nem eu sei muito, só o que vejo nesses filmes e o que vi no Salar – é, teve o Salar – a experiência mais próxima de uma cratera que jamais pude pensar em ter. No carro o guia comentou, en passant, que no último verão um rapaz pisou num lugar que, com certeza, não deveria ser pisado – a areia se move, abre numa cratera onde e quando quer, a impermanência do solo- a perna dele entrou no buraco fervente até o joelho e ele não resistiu e eu não quero mais falar sobre isso porque ele era um rapaz e era israelense e estava de férias e nós ficamos quietos pensando nele, nos amigos, nos pais; tudo muito conhecido. Pareciam caldeirões de sopa completamente enterrados no chão, de diversos diâmetros, fervendo, mas nem senti calor – não tenho memória disso – só lembro do maravilhamento de estar à beira de uma areia movediça com borbulhas e gases. No meio de uma área gigante, seca e inóspita, nuvens baixas saindo da terra, como se fosse uma brincadeira. Algumas cordas mal amarradas indicavam que ali era um lugar de turismo com um certo grau de perigo; e só isso no meio do nada, lindo de morrer. Sabe como é, turismo na Bolívia.

 

NO FILME INTO THE INFERNO DO W. HERZOG, BASEADO NO LIVRO DO VULCANÓLOGO CLIVE OPPENHEIMER.

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