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ESCREVER É ESTAR VIVO

19/09/2020

Socorro Acioli

A literatura oferece a boa e ampla ventura dos encontros: encontro com outras artes e áreas do saber, por exemplo. E também entre pessoas. Na crônica abaixo, publicada originalmente no jornal O Povo, de Fortaleza (CE), em 5 de setembro passado, a escritora Socorro Acioli reflete sobre um desses encontros felizes, quando participou da edição recente do curso A Literatura como Experiência Antropológica, conduzido por Itamar Vieira Jr. na Escrevedeira.

 

Ano passado foi publicado no Brasil o romance Torto Arado, do escritor baiano Itamar Vieira Jr. É tão bonito que merece uma crônica só para ele, detalhando o vigoroso entrelaçamento entre ideias e pessoas. Este livro retira alguns véus da nossa história oficial e expõe marcas invisíveis sob a pele de todos nós, brasileiros.

 

Pelo encanto com o livro, fui descobrindo a admiração pelo autor. Itamar é geógrafo de formação, Doutor em Antropologia (Estudo Étnicos e Africanos), escritor e funcionário público, como antigamente. Um leitor admirável, com um repertório sólido de conhecimento sobre todos os caminhos abertos pelos textos.

 

Por isso tudo não pensei duas vezes quando vi que Itamar ofereceria um curso on-line de travessia entre Antropologia e Literatura. Não tinha como dar errado. E não só deu certo, como foi transformador. Para quem vive no universo de estudos e leituras, poucas coisas são tão fortes quanto descobrir um novo pensador, alguém que fale sobre seu campo de conhecimento de forma acessível e renovadora. É preciso escrever bem quando se faz ciência. É preciso desejar chegar no leitor.

 

Foi por causa do Itamar que conheci Tim Ingold. Seu livro Estar Vivo foi a base do curso, o ponto da partida para desenvolver melhor a ideia de que escritores deveriam aprender muito com os antropólogos sobre os gestos de observar, descrever, participar e deixar que o leitor participe daquele universo construído com palavras.

 

Logo na primeira aula que o professor nos arrebatou com uma frase: escrever é estar vivo. Longe disso não há literatura. Longe da real experiência da vida não existe criação. E viver exige uma entrega constante e humilde, porque somos muito pouco, muito pequenos em comparação à infinidade de teias que formam o universo.

 

Estradas são teias. Palavras, fotografias, livros, músicas, filmes: teias. Amizades, grupos, aulas: teias. De todas, minha preferida é a Teia da Sincronicidade. Foi durante este mês de aulas com Itamar e os escritos de Tim Ingold que ouvi pela primeira vez a música de Jorge Drexler, Movimiento. E desde então tenho escutado muitas vezes por dia.

 

Somos uma espécie em viagem. Nós não temos pertences, somente bagagem. Vamos com o pólen no vento. Estamos vivos porque estamos em movimento. A canção é uma narrativa, uma história sobre quem somos. Seres andantes, em movimento, bisnetos, netos, filhos de imigrantes. E todos fortemente conectados às terras por onde passaram nossos antepassados e por onde já passamos. Nada se apaga.

 

Itamar mencionou o povo Evenki e deles uma linda frase: Sou a soma de toda peregrinação. Sou todos os lugares por onde andei. E daí podemos fazer uma analogia ao ato de ler, que é viajar tendo o autor como guia e ao de escrever, o desbravar solitário de um caminho. Os dois movimentos deixam marcas, são percursos tão intensos quanto as viagens e os deslocamentos do corpo.

 

Os fios de vida dos personagens estão entrelaçados entre eles e com nossas próprias vidas. Eu mesma, esses dias, não canso de pensar no Bartleby, do Melville, um fio tão longínquo, um texto adorado por Jorge Luís Borges, que ainda nos faz pensar tanto nos nossos dias.

 

Escrever é estar vivo. O fazer etnográfico e o fazer literário são instrumentos de observação da vida. Itamar também nos disse que o que acontece no mundo são processos de vida, não de tempo. E de repente misturamos o sertão da Bahia do livro do Itamar, o mundo explorado por Tim Ingold, a voz do Jorge Drexler, para olhar o mundo em pandemia e tentar escutar o que nosso tempo está tentando nos dizer.

 

Mesmo em pandemia, fazemos novos amigos, a vida segue, a mente está acordada para mudar. As coisas não devem ser quantificadas, mas mensuradas pela força. Eis a verdadeira fonte da literatura e de outras formas de arte: o que é forte, o que impacta e transforma. Somos uma espécie em viagem e esta frase é pura paz.

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