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CONTRÁRIO AO PRESENTE

12/12/2018

Noemi Jaffe

Em 1759, foram lançados em Londres os dois primeiros de uma série de nove volumes, que completariam um romance destinado a se tornar famoso. Num desses livros, faltavam algumas páginas. A justificativa, apresentada pelo próprio narrador, era que as páginas ausentes eram tão sublimes, que sua publicação romperia o equilíbrio harmônico criado pelo restante do texto. Além disso, as inúmeras digressões do romance, de tão excessivas e obsessivas, quase levavam o leitor a desistir, já que os desvios superavam os caminhos da história.

Trata-se de A vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne, que rompia com os padrões do romance conforme vinham se formando, assumidamente influenciado por Montaigne, Rabelais e Cervantes e, mais tarde, cultuado por Schopenhauer e Marx, e assimilado por escritores como, entre outros, James Joyce, Virginia Woolf e Machado de Assis.

Transgressões a um cânone, ao contrário do que às vezes se pensa, não são exclusividade do século XX ou de nossos dias. O gosto ou a necessidade de desafiar os limites do pensamento e da linguagem é milenar, e tanto o frescor como a qualidade literárias, sua permanente renovação, dependem desses autores corajosos.

Corajosos porque a comunidade leitora apega-se insistentemente a hábitos e padrões, e qualquer coisa que ameace perfurar essas estruturas é geralmente recebida com rejeição imediatista. Foi assim com Joyce e seu Ulysses, por exemplo, que demorou muito a ser publicado e só foi aceito por uma livreira maluca de Paris; com Faulkner, ganhador do Nobel de literatura, mas que teve obras recusadas por inúmeros editores; com e. e. cummings, que chegou até a montar um poema em suposta homenagem às 14 editoras que não aceitaram publicá-lo; e com Oswald de Andrade, autor que até hoje é chamado de infantil ou incompreensível.

Ser contemporâneo é, necessariamente, ser contrário ao presente, diz Giorgio Agamben. Para ele, quem aceita o status quo quer mais o passado do que o presente ou o futuro, está mais preocupado com a manutenção do que com a mudança. Pode surgir a pergunta “mas por que mudar?” Será que a mudança é sempre necessária? Ao menos na literatura, sim. O mesmo, o igual, o que se repete, se não temperados e renovados, tornam-se cegamente habituais. E o hábito tem, constitutivamente, horror a desafios e questionamentos, coisas que, se não o principal, são um dos mais importantes aspectos da literatura.

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