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COMO SE FOSSE A LOCUÇÃO DE UM JOGO DE FUTEBOL

16/04/2019

Escrevedeira

Neste bimestre, os grupos da oficina de escrita, com Noemi Jaffe, estão trabalhando “ação”. Um dos exercícios propostos em aula foi o de narrar uma ação trivial (espremer um suco de laranja, amarrar um sapato) como se fosse uma locução de um jogo de futebol.

Os resultados, da turma de terça-feira, estão abaixo:

 

Para ser lido como um narrador de jogo de futebol o faria, frente a uma jogada de quase sucesso.

 

Ela chega ao ponto com a respiração em suspenso, procura algo na bolsa, olhos fixos no ônibus laranja que se aproxima. Consegue ler 1847P e percebe que logo atrás o 1358N faz uma manobra que a impede de ler o letreiro de destino. Mesmo se conseguisse, as letras se movimentam com regularidade entre a indicação da avenida que (todos sabem) ele passa, e um Feliz Páscoa que tem data próxima. Ela dá uma corridinha discreta para não torcer novamente o tornozelo até conseguir o ângulo favorável para ler o destino mas, nesse momento, o motorista desvia pela direita, ignorando seu abanar de braço e acelera em direção à outra faixa.

 

Sandra Abrano

 

A bexiga amarela quica na borda e pousa na superfície brilhante da piscina; o olhar de Fran segue a trajetória da bola; Cecília, do outro lado do jardim, antecipa o movimento do menino, dribla um garçom, um terno cinza, três taças suadas, mas alguém se arqueia numa risada, a mãe hesita diante do vestido rosa e Fran cambaleia em linha reta em direção à bola. Segue despercebido entre os saltos, agora está perto, estica o bracinho, e o grito de Cecília não chega, mas no úuuultimo instante um braço vem do alto, em gancho, ergue o menino, os dois pezinhos a chutar o ar.

Maria Abramo Caldeira Brant

Consegue segurar o guarda-chuva e o celular na mão esquerda, sem perder as palavras já escritas na tela do whatsapp. Com o dedão, enviar. A direita fica desprotegida ao dar o sinal para o 877T e, no mesmo instante, a manga encharca. O motorista dá duas piscadas com o farol, iluminando a poça que é atingida pelo pneu e espirra em sua calça cáqui. A mão direita, agora, está na coxa, espalhando respingos de água e sujeira. A porta se abre, grudada ao meio fio e, antes mesmo de decidir se colocaria o celular no bolso ou no compartimento lateral da mochila, visualiza a resposta: não. Mete no bolso traseiro esquerdo mesmo. Uma péssima escolha: o fio do fone enrosca na alça do guarda-chuva, impedindo que alcance o botão para fechá-lo. As outras pessoas já estão dentro. O farol abre. Partem.

Mariana Caló

O banquinho é pequeno demais para um traseiro humano. Pisa com o pé esquerdo no pedal, passa a perna direita para o outro lado. A perna é rápida, mais rápida que o vento; o pé é uma pata de elefante e aperta o pedal com firmeza; o tórax equilibra-se como uma libélula parada no ar um instante antes do voo. Agora aciona todos os músculos das duas coxas em movimentos circulares, mantém os olhos fechados um pouco mais que o normal. A bicicleta fina equilibra-se de modo circense. Não tomba. As pálpebras se abrem e se fecham rápido demais, a barriga faz movimentos de trampolim. O pai e o irmão movem as mãos para cima e depois batem uma mão contra a outra. Gol, pensa. A pista tremelica. Uma gota de suor no pescoço. Vê as próprias pernas em movimento, lembra-se que está sobre duas rodas – apenas a velocidade a mantém vertical. A bicicleta inclina para o lado direito. Vai cair. Não cai. O pai grita algo. Ela aperta forte o guidão, move as pernas com ainda mais força. A mancha de um tronco de árvore contamina toda a vista. Um golpe no nariz, o ombro batendo na pista dura.

Julia Codo

Estaciona o carro, espera as portas automáticas se abrirem e está valendo!

Pega um carrinho, hesita, volta, uma cesta basta! Avança pelo corredor de frios: agarra o queijo branco, o iogurte de frutas vermelhas e passa batido pelo peito de peru. Desvia da senhora em marcha ré, dribla o pai que carrega o filho dentro do carrinho e chega às frutas que a mãe pediu: é tipo de maçã que não acaba mais, amigos!

Pega duas de cada, segue o jogo, mira o aperol, o gin, o cabernet sauvignon, mas é o azeite equatoriano que morre na cesta.

O caixa 5 está livre, uma família com a compra do mês desponta na lateral, aperta o passo, corre disfarçado, vai que é sua!

– Cpf na nota?

– Não.

– Cartão fidelidade?

– Não.

– Aqui é lugar de gente feliz?

– Não.

Tá expulso.

Heitor Flumian

…lá vai Josué, driblando os carros, passou um, passou dois, sacou o revólver – revólver é TAURUS, a sua melhor opção em armas de fogo! Bateu o revólver no vidro, o motorista assustou, Josué insistiu, abre o vidro, viado, abre o vidro!, o motorista hesitou, trânsito travado, indefinido, Josué apontou, atiroooou… Não, não atirou, fez que ia atirar, o motorista abriu, girou a manivela – o que é isso, meu filho?!, manivela é coisa do passado!, troque seu calhambeque usado por um seminovo na ARMANDO VEÍCULOS, onde você sempre faz um bom negócio! Passa a grana, filho da puta!, o motorista deu a grana, Josué fugiu, o motorista arrancou, o motor estrebuchou – o seu motor merece gasolina aditivada, gasolina aditivada é PE-TRO-BRAS!

Bruno Leuzinger

Marli

Nove na Kombi parada. Marli desconhecida na turma. Meia noite, praia da Tartaruga.
Marli desce. Instintivamente, em dois segundos, eu e o Zeco também. Os três. Só os três.
Ela atira as sandálias sem direção. Vestido agarrado dá alguns passos na areia. Eu e o Zeco a reboque.
A areia pinica os pés já descalços. Ela sequer memorizou nomes. Olhos de atriz italiana, corpo roliço.
Velocidade da lua duplicada sobre a corrente das coisas. Marli entra no mar, nada se explica, nós dois imantados atrás. Marolas pelo joelho, ouço um gritinho pela fria lambida da água nos seios. Nova onda derruba o Zeco e o acaso me tomba ao lado dela. Não resta opção, eu a abraço para me firmar. Olhos pedintes em compasso de espera. Ajeita o cabelo sobre a orelha. Eu a trago para mais perto. Não preciso de muito mais, seu ventre cola no meu na fatalidade da maré vazante.

 

Paulo Ludmer

Framboesa

Primeiro encontro, brunch é mais seguro. Felícia morde a torrada, mastiga de um lado, mastiga do outro, o Zé chega do bufê e diz que prefere chocolate, não tem. Ela vai engolir, a sementinha entra com tudo no meio dos molares. Era geleia de framboesa. Pede tempo, passa a mão na bolsa e se levanta. Entra pela direita, dribla a mãe com o bebê, dá com a porta escancarada do banheiro. É entrar e trancar.

No espelho, arreganha os dentes, os cinco anos de aparelho fixo valeram, e alcança pelo tato a caixinha verde do fio dental. Fio não, fita. Encerada e mentolada, que o outro não funciona. Enrola as pontas nos dedos e mira entre os molares do fundo, os da esquerda. Penetra com um tranco leve e sobe liso pela parede. A semente escapa, vai para o canto entre o esmalte e a gengiva. Na segunda consegue. Solta o grãozinho, pega sobre a digital do indicador e admira. Enrola como um brigadeiro mínimo, com a ajuda do polegar. Prepara, mira e dá um peteleco. O grão some no cimento queimado do piso.

Tem mais, é caso de serviço completo, por que não. Puxa outro fio, dessa vez dos compridos. Enrola cada ponta num dedo e parte para o ataque, com método, do fundo para a frente. Começa atrás do molar esquerdo, onde estaria o siso, arrancado com os outros três no mesmo dia, quando o dentista teve de enfiar o joelho no braço da cadeira para conseguir puxar direito. Trabalha cada dente de cima.

Cobiça o enxaguatório, quer os dentes lisinhos. O banheiro do café é dos que têm: azul celeste, com embalagem gigante e copinhos de plástico. Se serve de meio copo e começa a bochechar, conta até sessenta, um minuto, como recomendou o dentista. O Zé que espere na mesa do café, não gosta do jeito como ele fala, que seje. Cospe, aproveita o ardido, não segura o ah. O Zé lá fora deve ter mau hálito. Não é dos que dizem princesa, mas quase. Pega outra fita, faltam os dentes de baixo. Vem de novo, do fundo para a frente. Passa a língua devagar, espalhada. Quase lisinho, falta escovar. Agarra a Oral B para viagem e o tubinho de pasta, conta até dez a cada grupo de dentes. A língua testa a arcada: lisa e perfeita. Sorri. A boca do Zé não chega nem aos pés.

Angela Marsiaj

A casca da cebola não é só uma casca. Do ocre avermelhado ao amarelo claro, ela tira as camadas com o polegar e o indicador. Aí, pega a faca e corta ao meio a bola branca . Uma metade tomba para o lado, a outra fica. Segura uma metade, enfia a faca e desenha cortes verticais que não atingem o bulbo. Uma água espumosa se desprende e ela lacrimeja. Funga. Passa o dorso da mão livre no rosto para interromper o corrimento. Respira fundo e passa a fazer cortes horizontais profundos. Ela agora quer atingir a base da cebola, o que a mantém cebola. Por onde a faca avança, a soltura. Centenas de pequenos quadrados rolam pela tábua úmida.

Ela pega a outra metade.

Miriam Mermelstein

Acorda atrasada. Enrosca o pé no fio do carregador do celular ao levantar da cama e o aparelho cai da cabeceira enquanto ela chuta um livro largado no chão para debaixo do armário. Veste a blusa do avesso, ajeita o cabelo num nó no alto da cabeça, arranca a bolsa do pendurador para enfiar o rímel e o remédio para enxaqueca. Passa desodorante no caminho para a cozinha, onde tem que abrir espaço entre a louça suja da noite anterior para fazer o café. Apoia o coador no copo e, num movimento mal calculado para pegar o pó na prateleira acima do fogão – que ideia botar ali, – o pote de vidro que o contém se espatifa no chão, uma explosão de cacos minúsculos enquanto o pó gruda nos vãos de rejunte gasto do piso. Abandona a cena assim mesmo. As calças ela abotoa quando o elevador bate no térreo.

Betina Neves

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