Ventava. Forte. Os arbustos, as flores, tudo se desviava do vento, tentava, abaixava galhos, tudo virava de lado, virava de costas. Tudo se recusava a olhar para ele. Medo dele. E ele vinha, irado. Torcia a franja do coqueiro. Embaraçava a palha do quiosque. Arrancava a folha da amendoeira. Levantava a copa da palmeira. Torcia, embaraçava, arrancava, levantava. Doido, rápido, forte, dominava. Ela fechava os olhos, se encolhia... o tapume, via o tapume. A tábua longa e espessa, enorme, madeira compensada, aglomerada, vestindo camiseta de candidato, ela puxava a saia para baixo, tentava. Arrastada até lá pelo cabelo, pela saia, pelo braço. Ele cheirava mal. Trovão! Não, trovão não; não pensa no trovão. Não pensa no peso dele, o tapume, aquele suor, o peso, a respiração que não vinha. Não pensa no... na dor... na fungada... na vergonha... Pensa em... pedras imensas, de gelo, granizo cobrindo o gramado, a calçada. Esmurrando as vidraças, amarrotando a lataria dos carros estacionados. Sangue na testa, as mãos presas, ela não conseguia estancar, escorria. Olhos fechados; se não visse o rosto, talvez ao menos sobrevivesse. E veio água, uma chuva de lua cheia, se debatendo e afogando tudo. Ondas, ondas por dentro. Trovão! Trovão não. Dói. Um tronco. Um tronco? Rompia a barreira dela, impiedoso. Cala boca! Trovão trovão trovãotrovão! Flores, como mãos, negaceavam. Pensa... na terra logo encharcada formando poças que respingavam alto, assustadas, se espalhando. A água rasgando folhas e arrancando brotos. Tudo pelo chão, castigado. Tudo arrastado pelo cabelo, pela enxurrada. E lá vinha ele de novo. O vento. Encontrava frestas, fungava, imprensava, lambia, gemia. Às vezes ela pensava que era um lobo, uma criança, um bebê chorando, alguém doente. Um gemido esquisito, nojento, ritmado. Assustada ela. Aflita. Um braço travando o pescoço. Trovão! Não pensa... Dolorido, inchado, molhado, imundo de lama. Sufocada pela mão. Trovão, mais forte, mais um trovão, mais um. Um relâmpago gigantesco. E o fungado, e a pressão, e a cadência, e o gemido, e... Fica quieta, calaboca. Isso mesmo, pensa nisso. Pensa só nisso.

E a chuva não parava, verdadeira manada de hipopótamos que riam, debochavam. Isso, hipopótamos. Pensa em hipopótamos. Hipopótamos africanos, da Ilha do Fogo, em Cabo Verde, tudo africano. Como era mesmo? A capital de Cabo Verde se chama Praia, o povo é cabo-verdiano, lá eles falam inglês e crioulo. Cabo Verde é um arquipélago, fica no Oceano Atlântico, perto da África Ocidental. Isso, isso é bom, pensa nisso, não pensa em mais nada.

Parou.

Parou.

 

Não chovia mais, não ventava mais. 

Enxurradas que diminuíam de força, de espessura, cada vez mais. 

 

Parou, 

aos poucos 

parou.

 

Folhas arrancadas dos galhos, ensopadas no meio da rua 

Deitada, tijolos, cimento, escombros. Ela olhou para o lado e viu o caderno de folhas brancas. Branco. Não tinha feito a lição. Olhou para cima. Mais um tapume. Cor de laranja com letras escritas na frente. Um time de futebol? Um rosto. Era outro o rosto. Branco agora. Por cima dela. A risada. Um trovão fortíssimo.

Um tapume, um tapume caído, caído sobre ela. Tinha pés de concreto, gigantes. Mãos na garganta, o cabelo arrancado. E babava.

Tapumes, placas de obra, montes de areia, tudo caído 

quebrado 

deitado 

achatado 

Ela debaixo do tapume, imprensada, impossibilitada 

E chuva. Ela ensopada, sufocada. Quis gritar e não deixaram. O vento voltava assustador. Ela não reagia. Não gritava e nem resmungava. Ficava ali, imóvel, esperando parar de novo. Esperando que parasse de novo. E era outro vento. Franjas do coqueiro torcidas, palha do quiosque embaraçada, folhas arrancadas, saia da palmeira levantada, galhos abaixados... virados de costas. Não olhavam. Torcida, embaraçada, arrancada, levantada, abaixada, virada. Ela quieta, não gritava, não arranhava. Quieta. Já não reclamava mais. Nem pensava mais em hipopótamos. Esperava só.

Ouvia o vento

Sentia a chuva

Os trovões, muitos trovões

E ela paralisada. Esperando

Encharcada

Enlameada

Sangue, tanto sangue

Meio morta

 

Pingava ainda 

Fino, agora 

 

Parou

Parou

Olhou em volta olhou em volta olhou em volta

rastejou

Escorregou enquanto se levantava, o joelho ralado, o sangue na testa

 

Ela já nem desviava da água cuspida pelos ônibus. Escarrada

correu correu         correu-correu-correu   correucorreu       correucorreucorreucorr

Pulava as poças e as calçadas quebradas

O sangue, 

tanto sangue 

ainda escorria

Braços à frente. Tropeçava, caía, escorregava outra vez

 

correucorreu correu     correu   correu       correu       correu

 

Chegou em casa. A mãe fora, trabalhando. A avó não acreditou. Nem quis conferir.

 

Passageiro da Chuva

25/10/2023

Elidia Novaes