Entre maio e junho de 2023, Noemi Jaffe trabalhou em suas oficinas de escrita o tema da memória.

Durante o percurso, os grupos tiveram contato com textos de vários autores que exploram o assunto, como Julian Barnes, Graciliano Ramos, James Baldwin, Jeanne-Marie Gagnebin, para citar alguns. Entre outras coisas, os participantes viram como as lembranças espaciais alimentam e estimulam a memória individual.

Em função disso, um exercício foi proposto: Noemi pediu aos participantes que lembrassem do espaço do quarto de seus pais e fizessem um percurso dinâmico por esse espaço, valendo-se de suas lembranças.

 

O resultado você pode conferir nessa coletânea de textos abaixo:

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O entalhe da cabeceira da cama parecia um leão, dois leões, mas eram flores de bocas abertas, retorcidas pela falta de sol, pelo excesso de sol. Um criado, dois criados, um de cada lado. O abajur que demorava a ligar, apertar os dois botões de uma vez, ficar segurando, a luz indecisa, claudicante, um vagalume preguiçoso que uma hora acendia. A lata de vick vaporub, o cheiro mentolado que era dela, que é dela, o rádio preto. A colcha marrom e bege, o fundo bege, os pelinhos marrons fazendo desenhos sinuosos, feito flores, feito leões, feito sol. Do outro lado, a cesta de livros, um, dois, cinco, revistas de xadrez: Os melhores lances, 102 aberturas. Recortes de jornal com jogadas de xadrez colados no azulejo do banheiro com farelos de sabonete. A maleta azul marinho no armário, um maço de cigarro charme, uma pastilha valda, um terço, um lenço com uma florzinha bordada.

Maria Fernanda Elias Maglio


A cama era alta, demasiado alta, ou eu que era pequena demais. No criado do lado da mãe estava o livro de catecismo, cheirando a vela e véu, com pensamentos que ela nunca acreditou. Mas o melhor sempre foi o armário de roupas, maciço. A porta da direita com espelho, dentro prateleiras, a de cima com uma caixa inteira de amostras de batom com tampinhas transparentes. Assim que ela saia, era lá que eu cometia o pecado número 1 do livro de catecismo em cima do criado: não desobedecer pai e mãe, principalmente mãe. Laranja claro, rosa morango, uva, experimentava todas as cores, uma após a outra, tomando o cuidado de lavar bem os lábios sem deixar rastros visíveis nos vestidos muito bem pendurados. Batom tem gosto de morango e de desobediência, até hoje. E tinha os coelhos da história do meu pai, nós dois deitados na cama muito alta. Coelhos até hoje têm cara de pai com bigode. O quarto tinha duas portas, uma que dava para a sala e outra para o quarto das crianças. A da sala só quem usava era meu pai, quando chegava tarde cheirando a pinga. A do quarto das crianças só minha mãe, quando vinha verificar se estávamos quietas, e sim, estávamos quietas, até hoje.

Cris Meirelles

 

Cabia muito pouco ali além da cama. Pensando agora, não me lembro de já ter dormido nela, naquele quarto, nem mesmo um cochilo à tarde com a TV ligada. A TV que pediu uma cômoda, pois precisava de um suporte que também abrigasse algumas roupas, mas as gavetas mal se abriam e logo esbarravam no colchão, por isso as roupas lá dentro eram as echarpes de casamento, os maiôs e umas blusas que não se queria descartar nem usar mais. Ela era branca, de puxador redondo cromado, mas o armário colado nela não, era marrom claro, laqueado (devia ser moda nos anos 90), o puxador comprido e opaco. Naquela casa nada ornava, pois não se mobiliava coisa nenhuma, um móvel era comprado de cada vez, e não tinha celular com foto pra levar na loja e ver se combinava. Tudo na cabeça. Do outro lado da TV, ali onde eu responderia que não tinha nada se não pensasse um pouco mais, tinha sim: uma cadeira guarda-roupa para o que foi usado, mas não o suficiente para estar sujo e ir não sei pra onde, porque o banheiro nunca teve cesto de roupa suja, mas era suíte. A primeira.

Nicole Alfieri

 

O lado mais desconhecido e brutal do mundo se escondia na gaveta grande embaixo da cama dos meus pais - revistas com fotos de mulheres peladas, um casaco de pele parecido com um esquilo morto, uma barra de ferro de utilidade duvidosa (só bem depois soube: serviria para um eventual confronto com um ladrão). Encolhida, eu cabia nesta gaveta de estranhezas nas brincadeiras de pique-esconde. Mais do que ladrão, eu temia mesmo era que uma cobra bem fina, filhote de coral talvez, entrasse pela fresta da janela de ferro verde bandeira e vermelha. Só mais tarde descobri que as casas de minhas amigas não tinham janelas verdes e vermelhas e muito menos quartos com piso de cerâmica multicolorido. As casas eram bege. Minha família era bege, mas, silenciosa, pisava o chão vibrante.

Lara Haje

 

O 253-2839 no papelzinho colado bem no meio do painel de discagem do telefone tijolinho, daqueles de rodar, uma linha central como o ordem e progresso da bandeira do Brasil, a caneta tinteiro que assinou a transferência de, pelo menos, um imóvel antes de ser também, ela, transferida para pagar dívidas, ao lado dos relógios que se foram antes, pagamento de algum prejuízo em Foz ou Punta, na gaveta de luxo de um péssimo jogador, a tv de vinte e nove polegadas que mal cabia na mesa dentro do armário planejado, o verde do Seven-Up destacado na camiseta toda preta do Botafogo, sempre a preta, pra dar sorte, sorte que não vinha nunca.

Luis Gustavo Medeiros

 

Um sofá-cama no canto do quarto, com o assento duro e áspero de corino, mesmo que coberto com o lençol (as noites mal-dormidas com a cara na parede mofada). Uma mesa de cabeceira com uma camisinha dentro da gaveta, “foi você quem abriu isso, menino?” Uma cama de casal sob a janela, movimentos confusos no escuro. Um guarda-roupa com portas de aglomerado, dois nichos para as roupas da criança. Uma tevê sem controle-remoto na prateleira do alto, uma vitrola, alguns vinis, contos de fadas em áudio, um fone de ouvido dos anos oitenta, abafando a discussão dos adultos.

Rafael Mendes

 

Sobre a mesa de cabeceira em madeira clara com frisos delicados na gaveta – os mesmos da cama, do armário, da penteadeira – ficava o rádio do pai. Da antena saía um fio enorme, que atravessava o quarto na diagonal, para ampliar o sinal, melhorar a transmissão, algo assim. O rádio sempre ligado.

Na porta do armário de roupas, o grande espelho. Quando a mãe saía e nos deixava livres para explorar a casa inteira – e o quarto, em especial –, abríamos a gaveta onde ela guardava as camisolas. Com as camisolas da mãe por cima das roupas – a amarela e a branca com detalhes luminosos prateados – minha irmã e eu parecíamos noivinhas. Pulávamos na cama, nos admirávamos no espelho. Festa de casamento.

Cris Penz

 

Um tufo de bombril na antena da televisão impedia que a transmissão oscilasse. Na tela convexa da TV, a cama de madeira refletida antes do ruído branco, o quarto inundado de preto e branco, o medo de adormecer.
As cortinas quase brancas caíam do teto ao carpete, um mundo de ácaros e possibilidades infinitas de perigos. O abismo debaixo da cama onde toda a luz da TV era absorvida.
Um grupo de crianças de porcelana sobre a estante tomava café e dançava; não se aproximar deles, não quebra-los jamais.

Carla Kinzo

 

Imagem: The Balcony Room, Adolph Menzel - Via Google Arts & Culture

MEMÓRIA

16/08/2023

Uma coletânea de textos produzidos pelos alunos da oficina de escrita com Noemi Jaffe