A oficina Poesia na Ponta dos Dedos, coordenada por Luci Collin na Escrevedeira durante o mês de agosto, gerou uma série de poemas realizados pelos participantes ao longo de quatro encontros. Parte deles foi apresentada ao final da oficina, num encontro de leituras aberto e gratuito, transmitido ao vivo, via Zoom.
Apresentamos a seguir uma nova seleção dessa produção, incluindo alguns poemas visuais, que compõe uma boa amostragem da variedade de temas e técnicas da poesia contemporânea. Boa leitura!
ALDEMIR SUCO
Organizando pedaços de mim em potinhos
Escapa pelos dedos o desossado tempo
Diluído ao vazio da sala sem alarme
Descamando horas gotejando momentos
De pedaços soltos meus pela tarde
Um pedaço de mim ficou ilhado na cama
Outra parte sorteia panelas para o almoço
E no chuveiro lavando a mente em chamas
Para com o silêncio voltar a trocar socos
Eu era o alvo e a tristeza me atingiu
Mesmo que se atire pedras no rio, ele não deixará de passar
As palavras que eu guardei, por baixo da língua, o buraco na sala engoliu
E agora só resta saber
Qual é o pedaço que por aquela porta vai me atravessar.
***
ANA CAMILA VEIGA
escorredor de louças
frágil
escul
tur
a
dois rostos
de cerâmica
num torso
de plástico
pia da cozinha
área
sujeita às cheias
imprevisível
frigideira de teflon
antiaderente
e manda lembranças
das últimas
dez refeições
***
DANIELLE RESENDE
Cão
o homem agachado na calçada
de pedras portuguesas
na esquina da farmácia dos bem-nascidos
sob a marquise recebe
os pingos da chuva
que o cimento não suporta
o ser de cócoras barba longa
boina rota e andrajos
assiste sequioso às criaturas
um centauro de olhos arregalados
abraçado às próprias pernas
ávido pelo olhar alheio
semblante de criança encharcada
súbito
dá-se conta de um cão
o cão estanca a sua marcha
o cão enxerga o homem
o gigante de pernas impotentes
fita o cão à sua frente
aspira obstinado e
a plenos pulmões late
em júbilo
***
DEISI JAGUATIRICA
Planeta Terra
Já passamos por reinados e hippies.
De trajes opulentos a andrajos
coexistimos todos: yupie, hipsters
Diversos talentos nos tantos gajos
De estilos e beca já surgem selfies
Usurpadores causam desarranjos
ecológicos, para que expies
tamanha ferida sem os arcanjos
amparando destruição e furtos
de cada pedaço da tua carne
Gaia querida, não entre em surtos
Desvencilha-te com graça e charme
dos parasitas que se fazem surdos
e trabalham para teu desencarne
***
EDERSON NUNES
Hiato
Como num raio
Se eu estivesse dentro de um
Me aproximo e penso
Na pata da garça
Na graça da pata
Na raça da vaca
Na vista da praça
Como um trovão
Se eu fosse o som de um
Passo por perto e toco
As curvas da estrada
As ondas da barca
As sombras da mata
Os goles da taça
Como uma sílaba
Se eu fosse apenas vogal
Me separo em hiato
Na luta da língua
Na rota da fala
Nos ecos da sala
No verso que acaba.
***
ELIANE R. COSTA
PERTENCIMENTO
Como estâncias
e árvores
gente contada
nas casas
nas ruas
signos
que habitam
memória e projeto
letra e prece
voz que fala
na pele
na boca
d'eus.
Um minuto
Conecto um minuto
mundo mágico,
autofágico:
lama exposta,
Brumadinho primeiro,
latifúndio de covas depois.
No mundo sensível,
espiamos para trás.
***
FLAVIO DE SOUZA
DUETO EM FUGA
(sobre poema de Luci Collin)
Poesia
Poetas
é a sonora frase
são cantores mudos
que em si
que em lá
o silêncio
se calam
profundo
o mundo
segundo em que
primeiro
se percebe
se pronunciou
que a ordem
a palavra e então
rasa
a luz
do mundo
na Terra
não é sequer
e toda a vida
parecida
em seguida
com a ordem
nada mais foi que
maior
a primeira
da vida
poesia
***
LIDIANNE SEABRA
Vida Viva!
Menstruar é poético
é Morte e Vida
Vida e Morte
severa a alguma menina
não há cúmplice
nem vacina
tem mulher que morre num dia
Sangra e Ressuscita
Menstruar é poético
é Morte e Vida
Vida e Morte
severa por alguns dias
mas mulher sempre ressuscita
se não menstruasse
ninguém nascia
precisa renascer
para continuar a vida
Menstruar é poético
é Morte e Vida
Vida e Morte
severa sina de nascer menina
não se morre todo dia
reverencio
o sangue que gera
humana vida
Menstruar é poético
é Morte e Vida
Vida e Morte
severa sangui (o) fício
faz parte do organismo vivo
cíclico feminino
útero pré - parado
ávida não fecundação
da vida
Menstruar é poético
um pouquinho de morte
sangui (privi) légio
na sorte que mantêm a Vida
Viva
***
M. N. SOARES
Era prelúdio de primavera
Com meus brotos navios
Singrei o desconhecido
No azul safira dos céus
Antecipei sem saber
Os rumos que tomariam
Minha vida e obra
Meu tronco machadado bastou
Para o desvelo do cerne
De todos os segredos
Na direção de mim mesmo,
Todos os épicos
Toda lírica
Todos os dramas de minha existência
A falta de proporção de meus dons
A extensão de meu destino não estabelece rima
Possível só num reconhecer dos limites
Circunscritos neles
Ramalhetes de eternidade
Faziam festa na duração do tempo
Embalados pelos ventos e ondas
Pela sede de muito mais.
O trabalho árduo que terá sido escrito
Aguardando que eu me abra
Que não hesite em reparar
Em vasculhar
Com a obsessão da criança que procura
Por seu brinquedo predileto
Com o afinco dos amantes
De livros
Perambulando pelas bibliotecas do mundo
Na busca por pergaminhos escritos há séculos
Com seus dialetos de simetrias ocultas
Como que escritos para mim no tempo de agora
Sem explicação
E ainda assim recolhendo alguma compreensão
Cala no fundo do coração perdido
A busca por respostas
Por novas questões
Por novas pulsações cintilando o inefável
Ainda que pairando sobre a face do abismo.
Adentro no baú redondo
Encontro, enfim, meus brinquedos e sonhos
Ideias, versos, melodias abandonadas
Compilações, devaneios, esquemas
Memórias esquecidas
Beleza intuída com apreço e calma
Por toda luz concentrada nesse tronco machucado
Reconheço
Atemporal magia do sol que me banha
E versifico como ser livre
E canto a liberdade da glória dos filhos de Deus
E não cesso de falar em ocasião oportuna.
***
RICARDO UHRY
Amores citadinos
Em família, vinte e um momentos: pai, mãe e irmãos
e ela santa, um anjo das Missões, meu primeiro amor citadino. Desgosto pelo calor, mais que amor,
quatro moradas, um tormento sulino
Por nascimento tornei-me vassalo de ações
Um concurso banca empregador libertei-me
Para Ijuí e uma faculdade em que encontrei
em apenas três momentos um amor avassalador
Logo meu amor voou e meu ser alçou
Em direção ao meu terceiro amor citadino
Foz das águas do Iguaçu e do calor
em que vivi aprendi e ensino por sete momentos
Dos mares das fronteiras paraguaias e argentinas
o canto da sereia curitibana escutei o quarto amor citadino atraiu todo minh’alma até que alcei, pelos ares
repousei, descortino, por doze momentos
Sentia falta do campo e libertino logo descobri
Uma soberana fazenda, de quem me tornei súdito
apaixonado de a encontrar nos fins de semana
Sem conhecer a cidade que seria o quinto amor citadino
Alma andarilha não sossegou e desafios levei
Ao quinto amor citadino, a Capital Federal
a conhecer de perto o deserto tropical
Encantador pelo qual não me apaixonei
Depois de quatro bons anos brasilienses
Compartilhando a cidade curitibana, com toda minh’alma
voltei todo ao braços de meu amor avassalador
amor por eternidade. Curitiba é minha praia citadina.
***
SIMONE ROSA
Um poema bem leve desliza,
é líquido, sonha.
Um poema muito solto corre
escorre na lágrima livre
transborda desfeito,
é palavra desdita.
Imprevisto
Depois da chuva
o sol chega mais perto,
verte os segredos do chão
em cores líquidas do céu.
Depois do banho, cheiro
de chá, minto, é café
e os beijos, nossos beijos.
Depois do solo aceso,
a toalha jogada no caos,
sopra, é quase vento.
Um dia, um dia de verdade,
antes de hoje, adivinho as vozes:
deixou vestígios em nossas línguas.
***
TECA MASCARENHAS
A ROSA TÓXICA DA ETIÓPIA oculta
mais dialética do que todo o vento
abrasado que geme nas savanas
de rubras vestes e poucas carnes
ostenta bocas despojadas
almas despidas
e espinhos que se incrustam
nos pés descalços
enquanto o sangue fecunda a terra usurpada
e tinge de púrpura o sinistro devir
a água doce que lhe aveluda o corpo
faz exaurir mananciais
e no sumidouro envenena
peixe e sereia mãe-d’água e acácias engole
gente e bicho vomita
fome
e mata
é majestosa
a rosa tóxica da Etiópia
mas não serve de alimento
não devolve ao pasto o almíscar
nem perfuma as mãos crispadas do ultrajado plantador
tampouco as alvas luvas do senhor
lhes disfarçam ou inocentam as escarlates digitais
***
VINÍCIUS SOARES
I.
Dissecar a palavra animais
a gaiola de gaia
e encontrar
O tigre-da-tasmânia antes de 1936 . fungos micorrízicos que fizeram plantas ancestrais se moverem sobre a terra . as últimas onças que se empanturram da cerveja que escorre do gado . o gado abatido no prato . a levedura que faz o levain . o gorila Harambe sacrificado no zoológico de Cincinati . a bactéria que coloniza o estômago . o tardígrado enviado ao espaço sideral em busca da cadela Laika . o vírus que reina com coroa e impõe silêncio ao mundo . o pinguim niilista do filme de Herzog . a tartaruga Jonathan, com 189 anos completos . O humano que olha para o gato que dorme em cima do poema
O mundo não é o que pensamos
II.
Cidade erguida
no aço da esperança
do eterno retorno da diferença
Coração sistólico sem diástole
entre-lugar do caos e da ordem financeira
Espera dócil o chicote do progresso
escondida atrás de um nome indígena
de uma língua morta ou esquecida
Presa a um único mundo
cava cega seu ocaso
Acelera esquenta repete
acelera esquenta repet
acelera esquenta repe
acelera esquenta rep
acelera esquenta re
acelera esquenta r
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POEMAS VISUAIS
POR 1. ÁLIDA ZEBALLOS; 2. INES SABER; 3. KENZO SUZUKI; 4. MARIA INES MOLL; 5. MARI LUCIA BALDISSARELLI ↓