Confira abaixo um conto inédito da escritora e professora Luana Chnaiderman, que tematiza os caminhos possíveis da criação de um texto literário, envolvendo a fascinação com a leitura.

No próximo dia 16 de março, Luana começa uma nova edição da sua já consagrada oficina ‘Escrever Aprende-se Escrevendo’, na Escrevedeira. Os encontros abordam em detalhe os elementos fundamentais da construção de uma história, tais como tempo, espaço, narrador e personagem, para incentivar e orientar os participantes da oficina no desenvolvimento de seus textos, incluindo exercícios diversos de leitura e de escrita. Em outras palavras, nesse conto, assim como nas aulas, estão em jogo as descobertas ligadas à criação literária. “Desse ir e voltar, brota a literatura”.

 

Bastian foi uma vez um menino. Um menino sem mãe. Ele não ia bem na escola, ele não era bonito, não tinha amigos e o pai, desde a morte da mãe, não falava muito com ele. Não sabia brigar, não conseguia dar socos nos meninos que chamavam ele de doido. Bastian gostava de ler e de inventar histórias. Um dia, ele roubou um livro. Era um dia de chuva, tinha prova de matemática e ele resolveu matar aula, matar prova, se esconder no sótão da escola e ler. E aconteceu com o Bastian uma coisa que sempre acontece: ele foi parar no livro, na história do livro que ele matou aula pra ler.

Bastian é um leitor que está no melhor tempo (a duração de uma prova de matemática, um dia de escola roubado) e o melhor lugar possível (o sótão rodeado de bichos empalhados, esqueletos desmembrados e colhões velhos de educação física, plástico grosso, a espuma soltando).

O mundo para onde Bastian vai está acabando. O Nada toma conta de tudo. Todas as personagens estão reunidas no grande salão de mármore do palácio de lótus para pedir ajuda à imperatriz Criança. Acontece que ela está doente. Todos se oferecem para partir em jornada de busca da cura da Imperatriz. Mas ela não escolhe nem o mais sábio, nem o mais forte e também não quer o mais valente. Ela manda chamar por Atreiú. E ela chama o Atreiú. O Atreiú é o filho de todos. Ele tem doze anos. Tudo que ele quer é caçar um búfalo. Ele sonhou com o búfalo e todos os meninos de treze anos devem caçar um búfalo. Mas ele não pode. Porque Queeqod, o centauro, o médico, o chama. Ele tem que buscar a cura para a imperatriz.

Ele é acompanhado por Bastian. Na verdade, ele é a isca do Bastian. Porque o Bastian tem que ler a história até o fim. Para saber se o Atreiú vai ou não conseguir a cura da imperatriz. E aí toda aquela jornada. O capítulo mais triste de todos os tempos, a cena mais triste de todo cinema dos anos oitenta: a morte de Artax, o cavalo do Atreiú, em pleno Pântano da Tristeza.

E no final da jornada resta somente coisa de meio metro de Fantasia. E o Atreiú está quase morto, só tem ele e o Fuchur e ele não achou cura nenhuma. E vai todo desolado pedir perdão à imperatriz, dentro do pouco tempo e espaço que falta para tudo acabar.

Mas a Imperatriz dá uma risadinha. E diz pro Atreiú:

– Mas você trouxe! Você trouxe consigo o meu remédio! Só falta ele acreditar!

Acontece que a cura da Imperatriz Criança é um novo nome. E nenhum, nenhuma das personagens de Fantasia é capaz de criar um novo nome pra si. Elas cospem fogo, sugam sangue de crianças, viajam com tapetes pelo ar, sabem feitiços e poções mágicas, mas não podem inventar. Então só o Bastian. E o Bastian é bom nisso. De criar coisas. Ele sabe.

O Atreiú fica puto. Quer dizer que fui usado? Atravessei todo esse rolê só pra atrair esse moleque? Sofri, perdi, enfrentei, ralei joelhos, derramei sangue só para que esse menino chegasse até aqui? E cadê ele, então?

O Bastian nessa hora até pausa a leitura. Já é de noite. Ele não conseguiu largar o livro. As aulas acabaram faz tempo, anoiteceu. Ele achou velas para ler, um cobertor para se cobrir. Os esqueletos e os animais continuam ali. Mas demora. Para o Bastian se convencer de que é com ele mesmo. Que ele faz parte da história. Depois para ele achar que pode. Depois para ter coragem. Fantasia acaba umas três vezes. Ou mais. No filme até começa a chover nessa hora. Já é meia noite. Ele tem que gritar. O nome da Imperatriz. Filha na Lua.

Aí fica tudo escuro. Tem só um grãozinho de areia. E A imperatriz diz a fala das fadas e dos gênios: faça um desejo.

Demora também. Para o Bastian lembra de um desejo. Mas os desejos vêm. E de cada desejo, nasce e renasce o mundo, que nem a Fênix, uma das habitantes mais célebres do mundo de lá.

E tem a segunda parte. Que é a história do Bastian, o salvador. E todo o rolê. De quem vira herói e fica cheio de si. E de poder. Até não querer ser mais. Herói. Bastian quer o que todo herói quer também, se não foi o caso de morrer em batalha: ele quer voltar para casa.

Um clichê é algo que foi muito repetido. Um clichê é também carimbo. Ritmo. Impressão. Marca. Um clichê é algo que ocorre e você já sabe onde vai terminar. Um clichê é algo com etapas previsíveis. O canto das sereias, ser ninguém, esquecer e lembrar de si. E há algo no reconhecimento. E também alguma estranheza.

Então desse ir e voltar, brota a literatura. Desse rolê pelos livros, pelas histórias, pela própria palavra e materialidade das letras do livro, da página. Desse rolê de passar pela tristeza, pelo oráculo, de abrir a porta só que ela só abre se você não quiser abri-la. Da pergunta: então, o que aconteceu? Dessa fênix. Daí nascem as histórias. E eu nem falei da dança dos marinheiros na névoa.

Imagem: Pintura de Cástor y Pólux (detalhe)

A DANÇA DOS MARINHEIROS NA NÉVOA

14/03/2022

Luana Chnaiderman