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AS MÃOS DELE

28/11/2020

Djaimilia Pereira de Almeida

Nesta semana, a novidade no blog é a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, angola de nascimento e radicada em Lisboa, com seu texto que propõe uma deambulação pelos sentidos das mãos, as próprias e as do outro, quando vistas como ‘o centro do corpo’. A partir do próximo dia 8 de dezembro, Djaimilia conduz a oficina O QUE NOS AJUDA A ESCREVER?, na Escrevedeira, oferecendo aos participantes experiências individuais e coletivas com muito do que, em termos práticos ou sensoriais, faz a escrita acontecer. Boa leitura!

 

As mãos (dele) tornaram-se o centro do (meu) corpo. Esqueço-me das pernas, de que me sirvo pouco. Esqueço-me do pescoço, da boca, dos pés, de tudo o que está por dentro da pele e me mantém viva. Já as mãos dão notícias a todos os minutos. Doem, existem. Tenho observado as mãos dos escritores, dos jardineiros da Câmara, dos empregados dos cafés, dos contabilistas, das assistentes de bordo, como falam pouco delas, se são limpas ou sujas, grandes ou pequenas, como são as unhas, se são peludas, se usam anéis. E sou levada das minhas mãos e suas dores até às mãos da minha vida, através do tempo, das avós, dos avôs, dos pais, daqueles que amo, dá uma História das Mãos com vários capítulos.

 

Descubro-me artesã, não no sentido em que as minhas mãos buscam beleza, mas na forma como estão gastas, cansadas, na forma como a sua transformação é dissimulada pelo teclado. Tornaram-se o centro do meu corpo. Temo por elas, penso quanto tempo delas me resta, quanto durarão sem me escaparem, sem se recusarem.

 

Terão as mãos um espírito? Vejo as mãos daqueles que conheço, enquanto escrevem. Como dançam e pousam, como recuam, como se esquivam, como soluçam, como chegam lá antes do tempo, como vão até aos óculos, como são obsessivas e têm uma vida própria.

           

Mãos que pegaram nas nossas e nos ensinaram a ser gente. Já não me lembro bem da cara dos meus mortos, mas ainda me lembro do relógio nos seus pulsos, das alianças que usavam ou não, das unhas verdes depois de arranjarem ervilhas, da volta dos dedos ao dobarem um novelo de lã, das voltas das palmas a tenderem a massa.

 

As mãos foram a última parte do seu corpo a desabitar-me. Persistem, vivas e fotográficas. As mãos tornaram-se o centro do corpo. Temo que deixem de responder. Escrevo à beira do momento em que escrever é assumir uma condição deficitária, aquela em que o corpo deixa de nos acudir e se torna atrito.

 

Se as mãos são agora o centro do corpo, que fazer das partes sobre as quais o centro lança a sombra? De que será que me esqueci enquanto me esqueci das mãos? De que será que me esqueço agora, que só penso que elas doem? Canetas, pomadas, dedais, lápis, borrachas. O texto é uma prótese, um prolongamento do corpo, uma nova mão e o seu gesto, um outro órgão. Recorda-me as pessoas que, uma vez amputadas de um membro, se lembram dele, têm comichão, sentem a sua falta. Por isso, tudo é tão obscuro a partir deste centro em que as palavras tomam o lugar dos dedos: não sei o caminho até onde a mão que escreve encontra a mão que ela escreve, nem em que porção do mundo, sem forma nem luz, vive tudo aquilo de que sinto falta enquanto escrevo o que consigo.

 

Uma velha senhora cigana apanha-me na esquina e quer ler-me a sina a troco de um euro. Dou-lhe o euro e fujo de medo. Terá ela dicionário para as minhas mãos, imbróglio de que não sei a solução, que está para a solução como as mãos do escritor estão para a solução da história?

 

O centro torna-se as mãos muito antes de sermos destros. As mãos tornarem-se o centro não é sinal de coisa alguma, nem consolo para nada. Escrevo, recorto, colo, não me dói a alma. Doem-me os dedos dele. As mãos, os ossos, dos outros são tão breves quanto os domingos.

 

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