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APRENDENDO É QUE SE ERRA

20/09/2019

Karla Lima

O texto a seguir foi escrito por Karla Lima, uma das participantes da oficina Escrita Vagabunda, que aconteceu no dia 14.09. Neste dia, perambulamos pelas estações Mooca, Guilhermina e Anhangabaú do metrô de São Paulo, lendo escrevendo e jogando.

Aprendendo é que se erra

Existe um tempo para errar: você pode cair muitas vezes antes de firmar as perninhas, dizer previlégio enquanto é adolescente, deixar o carro morrer até um pouco depois de obter a carteira de habilitação. Errar é privilégio de quem tem uma boa justificativa. Na falta dela, a falta é sua, e muda de nome para falha e fracasso.

Raramente existe um tempo para a errância. Meu Word nem conhece a palavra.

A oficina Escrita Vagabunda propõe substituir a obrigatoriedade do acerto pela acolhida entusiasmada do acaso. Dizia a apresentação, no Instagram da Escrevedeira: “Em um jogo de precisão e improviso, vamos perambular e desenvolver ações de escrita”.

O metrô de São Paulo e as ruas adjacentes às estações são o lugar; sábado é o tempo; observar, ler e escrever são as atividades. Os candidatos a errantes somos oito mulheres e um homem. Há também a professora Noemi. Professora? Professora. Após anos de doutrinação capitalista sobre produtividade e cumprimento de prazos, bora lá rever os conceitos de tempo e finalidade. Bora lá para o deleite da flanância (que meu Word também desconhece).

Mas ainda há regras: sentar no chão da estação não pode, informa o guarda sorridente, vocês estão em cima do piso tátil. E se a gente chegar mais pra lá? Também não pode, vai incomodar o pessoal do quiosque. Eu me levanto da roda para ir negociar com as moças do café e a Noemi: Karla, Karla, não! Comecei bem. Ela negocia e ele nos concede mais cinco minutos, se nos deslocarmos cinco centímetros. Liberamos o piso tátil, para benefício de deficiente visual nenhum. Dali a pouco chega uma colega dele: tem que levantar. Mas estamos fora da faixa tátil. Tem que levantar. Mas já estamos acabando. Lá em cima tem uma praça, perto do bicicletário, vocês sentam lá, é do metrô também, seguro, aqui não pode, tem que levantar. Certo. A proposta, hoje, é abraçar a vida como o jogo imprevisível que ela é. Obrigada, dona guarda, por nos manter nos trilhos do inesperado.

O que ela chamou de praça é um corredor largo, de cimento no chão e nos bancos contínuos que levam da calçada às bikes ao fundo. Se sentássemos lado a lado, não nos veríamos. Sentados frente a frente, o barulho do vento impede que eu ouça a leitura que uma moça do grupo faz do texto que abre a apostila, de Vilem Flusser, e também o seguinte, de Carlo Rovelli. Ao menos todos recebemos uma cópia. O dia vai ser longo e já começou com atraso, porque uma das participantes veio de não sei onde e no meio do caminho lhe aconteceu não sei quê. Meu lado germânico se irrita.

Irmãos cúmplices, especialmente quando têm pais rígidos, desenvolvem cedo habilidade para a leitura labial. Quanto maior a vigilância da mãe e mais severa a reação do pai, mais proficientes se tornam as crianças na transmissão silenciosa de avisos e na leitura de alertas mudos. Os rigores da minha educação, que ainda hoje me impedem de lidar com falhas de modo saudável, me valem agora para entender que a proposta para este sábado, apresentada lá do distante banco em frente, é a seguinte: vamos sortear as estações de metrô onde desceremos, ou subiremos, para leituras e produção de texto. Alguém diz A, alguém diz stop, voltamos ao subterrâneo e, orientados a não mais conversar, deixamos a estação Fradique Coutinho rumo à Bresser-Moóca, provocados a encontrar coincidências.

Em poucos minutos, vejo meia dúzia, e estranho quando, mais tarde, uma colega se queixa de só no último instante ter percebido uma.

São 11h15 quando chegamos ao primeiro destino. O destino nos presenteia com três velhinhos jogando dominó na saída da estação. A professora se aproxima, observa, conversa, tira foto. Nenhum de nós conhece a região nem sabe para onde ir. O que existe nas redondezas? A quinze minutos de caminhada tem o IBCC, diz o idoso mais jovem. Lá tem pracinha, é fechado, seguro. Quando as mais apertadas voltam do boteco onde foram fazer xixi, partimos pela Avenida Alcântara Machado, aka Radial Leste, caminhando sob o sol furioso. A primeira praça não é fechada, fica ao pé de um viaduto e está ocupada por pessoas em situação de rua, que se agitam à nossa passagem e nos observam com uma inquietação perceptível mesmo à distância. Pergunto para a moça ao meu lado: alguma vez antes você já foi considerada uma ameaça?

Mais alguns metros e o Instituto Brasileiro de Controle do Câncer nos acolhe com banheiro, lanchonete, bastante sombra sob a marquise e as várias árvores. Pessoal, quinze minutos para escrever e vamos nos reunir naquele ponto. O ponto é o estacionamento, a reunião é de novo em roda no chão. Cada um é convidado a ler o que conseguiu redigir naquele parco quarto de hora. A abundância de coincidências que identifiquei não me garantiu nenhum dos elogios da professora, que, aliás, nem percebe justaposição nenhuma no que descrevi, e me pergunta diretamente, mas onde está a coincidência? Sorrio amarelo e releio, ela sorri amarelo e passa ao seguinte. Bronca interna: você errou. Contra-argumento interno: hoje é pra errar. Tréplica: boa desculpa…

Lanche compartilhado, dizia o email que a escola mandou com as orientações. A cena só não é mais clássica porque o pano que a professora estica no chão não é xadrez, mas o restante está todo lá, frutas frescas, frutas secas, formigas. Meus generosos companheiros errantes sacam sucos de um litro, copos e guardanapos para o grupo todo, potes plásticos contendo sanduíches em pão de forma impecavelmente embalados em filme de pvc. Eu tinha entendido que a refeição seria realizada em conjunto, mas que cada um comeria o que levasse. Tiro da mochila uma caixinha individual de achocolatado e oito pequenas bisnagas com queijo (agora derretido e vazado) envolvidas em papel toalha; estão esmagadas e têm zero appetite-appeal. Sinto vergonha de oferecer e meu alemão interior: se era pra errar, você está fazendo direitinho.

Novas leituras: três Calvinos, um koan, dois poemas. Estou amando a parte teórica disso, são incríveis as explicações e contextualizações que a Noemi oferece. Novo sorteio, e a caminho da estação Guilhermina-Esperança devemos fazer apostas internas sobre o comportamento dos passageiros: aquele vai tossir, aquela vai mexer no cabelo. Mudar de personagem quando o observado fizer o que imaginamos; manter o foco enquanto não fizer. Sou boa de aposta: mesmo excluindo as ubíquas interações com o celular, tudo que penso a pessoa faz, mudo de aposta e de pessoa e funciona de novo, e o fato de as muitas coincidências anteriores não terem desembocado em elogio não basta para me fazer torcer pelo contrário. Tenho um padrão irremediavelmente capitalista, quero resultado, estou me entregando à errância, mas ainda não percebo a riqueza do erro, e sigo alegre por prever com sucesso as ações alheias.

Na saída da estação, o acaso tinha estacionado uma biblioteca circulante. Escrevam sobre as apostas que fizeram, Noemi orienta, e nos encontramos aqui de novo em vinte minutos. O grupo se dispersa para redigir e ela vai visitar o furgão comunitário, depois conta sorrindo que seus livros faziam parte do acervo. Achei bonitinho uma pessoa tão estabelecida ainda comemorar esses pequenos achados. Nova leitura, distribuição parcimoniosa de elogios. Algumas produções me parecem bem razoáveis, sem ser convidada venho comentando todos desde o primeiro exercício, ninguém me dá muita bola, mas ao menos a professora não repete: Karla, Karla, não!

Noemi nos fala de Walter Benjamin e do livro “Passagens”, lemos Baudelaire e João do Rio, discutimos tempo, medição de tempo, noção de tempo, natureza do tempo, quem o mede, desde quando, como e para quê. Para mim são conceitos inéditos, ideias interessantíssimas, para acessar esses novos horizontes eu poderia errar por meses e meses.

A última atividade é uma brincadeira com, justamente, o tempo. A última parada está a dez estações de distância, aproximadamente trinta minutos; vamos mergulhar em memórias e observar a coexistência do tempo interno dedicado a elas e o tempo externo que nos levará até o Anhangabaú. Percebam como os minutos transcorrem em diferentes velocidades, a professora convida, acrescentando mais uma vez que devemos guardar silêncio uma vez dentro do metrô. No meu vagão, um ambulante vende relógios. Sim, camarada, vamos comercializar o tempo.

De novo subimos à superfície sem saber o que há por perto, uma moça tem compromisso e precisa se despedir, depois é o casal que encerra participação, o comércio do centro da cidade começa a baixar as portas e ninguém sabe onde está nem para onde ir. Celulares em mãos, buscamos alguma padaria, outra praça, um lugar onde se possa fazer xixi. Por fim, chegamos ao Centro Cultural Banco do Brasil, oásis fresco e confortável onde usamos o banheiro e nos acomodamos para descansar, escrever e ser repreendidas por mais um guarda. Podem sentar, mas não apoiando os pés aí, recuem, desencostem…

As leituras obtêm variadas reações, quem é de outra cidade decide fazer um pouco de turismo e se despede das colegas, as que precisam voltar à estação inicial tomam o rumo do metrô, Noemi se despede na catraca, eu vou com duas moças comprar mais um bilhete. Pouco depois, vencendo o ruído dentro do vagão, conversamos sobre os piores momentos. Concordamos que vagar pela cidade é bom e que a vagabundagem literária endossada por teóricos e grandes autores é uma delícia a ser repetida; concluímos que erramos ao esperar aprovação para nossas errâncias e enfim entendemos a Orides Fontela: margem de erro, margem de liberdade.

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