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VIAGEM AO REDOR DO TEXTO – UMA ANTOLOGIA

09/12/2021

Vários Autores

APRESENTAÇÃO

por Leda Cartum

 

Viagem ao redor do texto foi uma oficina de escrita que durou de agosto a novembro de 2021. A ideia foi mesmo convidar o grupo a fazer uma viagem: de fora para dentro, e de dentro para fora. Da observação à imaginação, e vice-versa. Para isso, a cada encontro, foi proposto um exercício, sempre a partir de textos literários que serviram como pontos de partida para a escrita. Nessas semanas, muita coisa incrível surgiu: eu, como guia dessa viagem longa, fui surpreendida todas as terças-feiras pelas soluções e descobertas dos textos de cada um. Eu sentia que lia um livro novo e secreto a cada semana.

 

Um dos exercícios propostos, que decidimos entre o grupo compartilhar aqui no blog da Escrevedeira, foi a partir do livro Meninas, da russa Liudmila Ulítskaia, recém-publicado pela editora 34. Em certa passagem, a menina Gayané, amedrontada pela sua irmã gêmea, vai se esconder dos ciganos em um alçapão: e o medo que cresce dentro dela faz com que o mundo se desmanche numa imensidão assustadora, sem palavras, sem formas. A partir dessa situação, o exercício proposto foi escrever a partir da infância; a partir das sensações, dos medos, do olhar arregalado e perplexo das crianças.

 

No livro de Ulítskaia, a personagem Gayané constrói sekriétiki segredinhos, uma brincadeira russa comum, que consiste em fazer um buraco no chão e enterrar ali as coisas bonitas que querem ser guardadas. Um dia, depois de muito tempo, esse memorial pode ser encontrado de novo, como um recado que deixamos para nós mesmos. A proposta do exercício era procurar por esses pequenos segredos que deixamos guardados para nós mesmos na infância, e que às vezes voltam na vida adulta, e se revelam – e revelam algo de nós também. Os encontros da oficina foram para mim, enquanto professora, também como esses segredinhos: descobrimos muitas coisas.

 

 

 

Sem título

Charles Bosworth

 

Estávamos brincando juntos com os bonecos dela. Sentados no chão, ao lado da cama, ela me contava dos lugares onde tinha conseguido cada um dos brinquedos. Um deles tinha sido trazido pela sua mãe de outro país e podia ser desmontado e remontado como um quebra-cabeça. Eu dobrava a cabeça do boneco sobre o próprio peito e fazia seu tronco subir, guardava os braços e pernas bem dobradinhos e o homem se transformava em um animal. Depois desdobrava todas as suas partes e ele voltava a ser um humano, com os braços estendidos acima da cabeça.

Ela disse:

– Ouvi dizer que uma garota ganhou uma boneca de aniversário e essa boneca ganhou vida durante a noite e matou a menina.

Eu fiquei com medo, até que lembrei dos meus bonecos: eram todos meus amigos e jamais me atacariam durante a noite.

Ela tentou me assustar novamente:

– Existe uma fábrica onde eles fazem bonecos que viram facas.

Olhei para o que estava nas minhas mãos. Será que havia um jeito de girar sua cabeça pra fazer ele virar uma faca? Puxei suas peças como se tentasse resolver um desafio. Ele podia se transformar em muitas coisas, mas simplesmente não havia um lado afiado para fazer uma faca.

Ela fechou a cara e foi se sentar do outro lado da cama. Estávamos em silêncio, eu montando e desmontando o boneco e ela criando novas histórias. Resolvi me antecipar e saí do quarto sem dizer nada.

Andei pelo corredor atapetado, sentindo o tecido macio com meus pés. Acho que era de tarde, porque uma das paredes era toda coberta de janelas e entrava muita luz por ali. Brinquei de contar as portas para adivinhar quantos quartos tinham, mas logo me cansei. Tinha chegado no topo da escada e olhei para baixo. E foi então que vi o leopardo. Ele caminhava devagar no andar de baixo. Com as pernas finas dava longos passos lânguidos por entre os sofás e os tapetes. Quase escondida debaixo da escada vi também uma cama quadrada, daquelas que se deixam para cachorros, mas muito maior em tamanho, certamente posta para ele. O animal em si era imenso, longo como uma serpente, e de cor amarronzada. O felino parou ao lado de uma tigela de plástico e começou a beber água com sua língua rosa. Notei que ele não tinha me visto. Por sorte, ainda podia voltar para o corredor antes que ele soubesse que eu estava ali. Retornei pelo caminho que viera e andei apressado na direção do quarto, da minha amiga, dos bonecos, mas a imagem do leopardo já estava impressa na minha cabeça. Vi, naquele momento, na minha imaginação, o leopardo erguendo seu rosto da tigela, ouvindo meus passos abafados pelo tapete e partindo como um raio escada acima. Olhei para trás. Imaginei repetidas vezes seu rosto aparecendo por trás da curva do corredor. A cada passo olhava para trás e pensava que naquele instante a minha imaginação se concretizaria e que sua cara verdadeira, brilhando de curiosidade e malícia, apareceria no topo da escada.

Entrei no quarto e fechei a porta. Ela ainda brincava com os mesmos bonecos, atrás da cama. Precisei escolher as palavras com muito cuidado. Não achei que fosse possível que ela não soubesse do leopardo morando em sua casa. Tinha medo de perguntar e sofrer alguma humilhação. E se este fosse um animal de estimação tão comum para ela, tão doméstico e tão afável: ela ia debochar de mim por ter tido medo. Tudo o que consegui dizer foi:

– Acho que tem um leopardo na sua casa.

Seu sorriso foi ácido, cheio de prazer e confusão.

– É o meu gato.

Eu expliquei a minha visão. Ela, por sua vez, me disse que seu gato era muito grande, me mostrando com os braços abertos assim o seu tamanho. Eu olhava para o vazio imenso entre os seus braços, e sabia que ela exagerava na medida, mas não era possível que o leopardo coubesse ali dentro. O animal que eu tinha visto tinha sido muito maior. Ela voltou a me mostrar os bonecos e eu logo me distraí.

Voltei muitas outras vezes na casa, mas nunca mais vi o leopardo.

 

 

Prenúncio reptiliano

Beatriz Maia

 

Desde que eu me senti responsável por alguma coisa na minha vida, passei a ter muito medo de receber uma ligação com a notícia de que alguém morreu. Talvez tenha sido quando a minha mãe esperou que eu viajasse para me ligar e anunciar: vou dar o Tchutchuco, tudo bem? Concordei, porque sabia que não era, de fato, uma pergunta. Tchutchuco já havia subido no telhado outras vezes, mas eu havia sido suficientemente habilidosa para reverter a situação e prolongar nossa convivência.

Tchutchuco era uma tartaruguinha de aquário que ganhei de prêmio de consolação com a separação dos meus pais. Naturalmente eu queria um cachorro. Não. Um gato? De jeito nenhum. Um porquinho da índia! Credo! Um hamster? Deus me livre… Uma tartaruguinha? Chega, tá bom, você venceu. E assim encerramos a negociação pet do final dos anos 90: derrotada pela ausência do cão, mas um pouco vitoriosa, pois estava pronta para descer mais um nível e me resignar com um peixe.

E assim Tchutchuco chegou quando eu tinha nove anos e partiu quando eu tinha dez, indo “morar feliz em um lago, cheio de outros bichos” – o que possivelmente incorreu em um crime ambiental, cometido em nome de um apartamento sem fedor de aquário sujo.

Talvez seja desde então, que, inevitavelmente, toda vez que o telefone toca eu acho que é a notícia de que alguém morreu. O estômago vai no pé, as mãos formigam, sinto uma corrente gelada percorrendo o corpo, até que uma atendente de telemarketing mal remunerada anuncie a promoção. O mistério dos primeiros segundos de interação é puro sadismo.

– Senhora Beatriz?

“Eu”, respondo rápido, para ficar logo em silêncio, concentrada, procurando barulhos de fundo de uma delegacia, lugar em que nunca estive. Ouço uma digitação distante. Só pode ser um escrivão já batendo na máquina o boletim de ocorrência que documenta a tragédia. Meu deus…

– Bom dia senhora Beatriz, aqui quem fala é a Camila do…

Camila do IML. Camila assistente social. Camila é minha prima de terceiro grau? Camila carcereira do corredor da morte. Camila parece estar tensa, sinto uma nota de pesar em sua voz.

– … Banco do Brasil. Temos um novo limite de empréstimo, a senhora está interessada?

Porra, Camila. Não se liga para uma pessoa, Camila. Não para quem tem medo de per a família toda e ser avisada por telefone.

 

 

O dia em que fiz meu avô gargalhar

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio

 

 

Na grande sala de piso de tábuas largas que rangia com o peso dos homens, reuniam-se, quase todas as noites, meu avô e seus treze filhos homens. Ele teve uma filha mulher, mas, na tradição dos árabes, filha casada pertencia à família do marido. Treze filhos reunidos na sala de pé direito alto, que se abria através de duas grandes janelas para um pátio sombreado por uma parreira cultivada na tradição trazida do Líbano meio século atrás. O chão de tijolos, protegido do sol pelas folhas da parreira, transformou-se, com os anos, num tapete de musgo macio e verdíssimo, que, pisado, exalava um cheiro vegetal, úmido e limoso.

Eu gostava de brincar ali sozinho ou com meus primos, território de brincadeiras e de faz de conta, às margens do mundo enfumaçado de cigarros de palha dos adultos. Ali eu me sentia seguro.

Aquela confraria masculina era fechada para as mulheres que ficavam tagarelando na cozinha, e para as crianças que nunca ousavam entrar na sala, a menos que fossem chamadas para cumprir alguma tarefa demandada pelo velho patriarca, busca meu canivete menino, me traz um copo d´agua, busca o meu chinelo, pega o meu remédio em cima da cômoda. Ele foi esquecendo o pouco português que aprendeu à medida que envelheceu – esquecendo, também, que os netos já não sabiam a sua língua de origem – e dava as ordens naquela língua bela e incompreensível, o árabe. Quando, por azar, era eu o escolhido, sentia-me tragado por um sorvedouro, uma força terrível me puxando implacável para um buraco sem fundo. Meus tios, que não falavam, mas compreendiam o árabe, faziam a tradução salvadora do comando, e me arrancaram, mais de uma vez, da vertigem da queda em um escuro aterrorizante de medo e desproteção. Se a tradução demorasse, e, portanto, o cumprimento da ordem, meu avô brandia a bengala ameaçadora que nunca foi usada, mas era uma possibilidade que ninguém queria pagar para ver.

Meu avô me inspirava horror.

Ele usava uma barba branca sempre bem aparada desde que a mulher morreu, camisa de manga comprida fechada até o pescoço, fumava cigarros de palha que enrolava com a perícia de um artesão. Nunca sorria, nunca nos dirigia a palavra, ou o olhar. Quando beijávamos sua mão para pedir a bênção – uma mão branca cheia de veias azuis, as unhas bem cortadas, o cheiro de cigarro de palha misturado com vago perfume de sabonete, a tatuagem da estrela do oriente quase apagada pelo tempo- ele respondia alguma coisa como “ala-ardalec”, que os tios diziam ser deus-te-abençoe.

Um dia, com doze anos, fiz algo que irritou muito minha mãe, numa fase dela infeliz e frustrada com a vida doméstica. Ela, não só me bateu, como, exasperada, começou a me açoitar com ofensas que doíam mais do que as chineladas. Fiquei muito ferido com aquilo. O que ela gritava ultrapassou o que minha dignidade de menino podia suportar, e, num arroubo, com as orelhas queimando – a alma em tumulto por experimentar, pela primeira vez, a terrível sensação de amor e ódio pela mesma pessoa – senti aflorar em mim a possibilidade da rebelião: uma planta selvagem, cheia de seiva e vigor brotou no meu peito.

Decidi fugir. Eu tinha que fugir. Só não sabia para onde. Doze anos de idade. Onde buscar abrigo? Decidi ir para a casa do meu avô que morava na mesma rua, bem na casa onde não havia promessa nenhuma de acolhimento. Mas fui, no instinto. Avô, quem sabe. Cheguei, e o encontrei sozinho sentado debaixo da parreira. A hora do dia era muito quente, mas ali estava fresco, o cheiro vegetal do tapete de musgo, a parreira coberta de folhas novas, os primeiros cachinhos de uvas verdes depois da poda anual. Ele estava com um pijama listado, sentado na sua cadeira de balanço, a bengala encostada do lado, enrolando um cigarro de palha. Olhou-me curioso quando entrei. Sorriu um sorriso curto. Sentei-me no tapete de musgo por não me ocorrer outro gesto  depois de lhe beijar a mão e pedir a benção. Aí ele me dirigiu a palavra pela primeira vez na vida, numa mistura de árabe e português. Fiquei espantado de entender o que ele dizia: eu estava sem medo. Fez perguntas, mas não me lembro de nada que perguntou. Só me recordo que ele me enxergava, me descobria como neto. Ficamos os dois, serenos. Um avô e um neto, sem a confraria dos homens que era uma cordilheira que barrava meu acesso ao ele. Entre ele e eu, uma planície. Não me ofereceu nada, a não ser permitir que eu ficasse ali exilado a tarde toda, protegido da fúria da minha mãe.

Para acessar o pátio onde estávamos, vindo da copa, havia uma pedra, que funcionava como um degrau.  Naquela nossa surpreendente camaradagem, apontou a pedra com a bengala, e pediu que eu a arrastasse. Uma ordem meio absurda para uma criança, mas me pediu com uma cara amistosa. Não era uma ordem; era um pedido. E eu obedeci feliz. Era tão bom ter um avô. Fiz todo o esforço que podia. Coloquei todas as minhas forças de menino – queria tanto agradar meu avô -, mas a pedra não se moveu nem um centímetro. Então, meu avô deu uma gargalhada espantosa, gostosa, mostrando os grandes dentes amarelados pelo fumo: a pedra era cimentada ao chão, e, lógico, não poderia ser nunca deslocada. Brincadeira mais sem graça, mais absurda, mas ele gargalhou, e aquela gargalhada foi minha experiência inaugural de que eu poderia desencadear afetos, poderia fazer rir, me fazer amar: afinal, eu não era a criatura horrível que minha mãe me acusou. A gargalhada do vô me anistiou.

A felicidade que eu sentia era tão grande que não encontrava lugar dentro do meu peito de menino. Fui levitando para casa.

Quando cheguei lá, já escurecendo, vi muita gente da vizinhança na porta de casa, e até uma viatura da rádio-patrulha. Lembro do olhar ansioso e da mão gelada do meu pai pegando aflito a minha. Onde você estava meu filho? Minha mãe, aos gritos: onde você estava menino? Eu cada vez mais surpreso com a repercussão da minha pequena rebeldia, de como eu tinha sido capaz de produzir comoção tão grande naquele que era meu mundo de então, fui visitar o vovô, ficamos conversando a tarde toda. Já enfiando  unhas de aço no meu braço, minha mãe histérica, você quase nos deixou loucos, nunca mais faça isso, nunca mais, e foi me arrastando para dentro de casa aos tabefes, na frente de todo mundo: uma rígida máscara da vergonha grudada no meu rosto, meu corpo em queda livre em um precipício, a sessão de ofensas retomada com mais furor,  chance nenhuma de perdão, eu já sabia: minha tarde de prazer derretendo feito sorvete derrubado na calçada em dia de sol quente.

Não senti as chineladas, não escutei as ofensas, não chorei uma lágrima.

Tem dia que penso que nunca me curei da dor de ter encontrado meu avô.

 

 

 

Tia

Silvia Piorno Schiavon

 

Sempre verão no Rio, Cátia lembra muito bem desse dia atípico e fresco no apartamento botafoguense da tia, irmã mais nova da sua mãe.

Ela e a família iam lá com certa frequência e Cátia tinha fascinação por aquele lugar.

A tia não tinha filhos e o que havia ali era somente de e para adultos. Livros e mais livros e mais livros, bibelôs quebráveis de toda estirpe, garrafas e jarras de várias cores e tamanhos, quadros de museus do mundo inteiro, minudências para dar e vender.

Cheiro de gente crescida.

Nesse domingo não só a sua família tinha sido convidada para a feijoada, especialidade da tia, como os tios e primos também. Era muita gente quase apertada naquele dois-quartos-sala-cozinha-e-banheiro e Cátia era a mais nova. Raspa de tacho. Todos ali tinham terminado, pelo menos, o primeiro ano da faculdade.

Miúda perto dos primos e irmãos altos e atléticos, ela perambulava da cozinha para o escritório, inventando contos e fadas até o quarto, explorando o banheiro como uma detetive, passando o dia desapercebida, mas cuidando para não estragar nenhum livro e atenta com o copo de suco de jabuticaba, especialidade da mãe.

O sol já ia embora quando a tia, cheia de cerveja e demasiado alegre, começou a distribuir presentes póstumos. Livros e discos em destaque: a coleção do Chico ficará com o Pedro, irmão de Cátia e, segundo a tia, músico frustrado da família; a edição especial de Fausto irá para o tio Adriano, único homem daquela geração e com tendências trágicas e excessivamente dramáticas, ela sempre o provocava.

E assim foi enumerando item por item, familiar por familiar, entre risos murchos e comentários abafados, alguns raivosos e entre dentes, outros felizes e afirmativos. Até que parou e abriu outra cerveja.

Antes que o fôlego silencioso da família terminasse, Cátia perguntou se para ela a tia deixaria aquele LP.

Não, para você não deixarei nada.

Cátia levou um susto, tremeu de decepção e surpresa e uma tristeza invadiu o seu corpinho de 9 anos. Ajoelhada no chão de tacos de madeira, com o long play no colo, viu cair uma lágrima em Tchaikovsky e mais uma e outra gota.

Ela só tinha partituras dele.

Ela não era querida ali.

O burburinho da família já ia avançado quando ela secou as bochechas e colocou o disco no lugar, tomando cuidado para encaixá-lo corretamente na ordem alfabética, especialidade do tio; entre Simon & Garfunkel e Toquinho.

 

 

O pequeno príncipe

Fernanda Machado

 

 

Meus cotovelos estão apoiados no aço que cobre a roda do trator. Meu corpo inteiro treme ao andar pelos buracos da estrada. Sou do tamanho da roda do trator.

Meu rosto tremelica com o vento. É vento e sol e sombra sem parar e não consigo ficar com os olhos abertos. É muito bom!

Me sinto muito importante em pé, uma gigante com rodas que amassam tudo e não têm medo de nada. E mesmo de olhos fechados sei que a gola da cacharrel cor de vinho me faz ficar com o pescoço retinho, de bailarina. Eu, a cacharrel e a galocha. Me lembrou o pequeno príncipe. Kiko, o meu primo, está na roda ao lado. De vez em quando ele me olha e sorri com o vento que deixa o cabelo dele como o do cara do The Cure, que a minha irmã não para de ouvir. Só que sem olheiras. Ele também me lembra o pequeno príncipe, só que sem galocha. Ele gosta de andar descalço e não tem medo de espinho ou cobra ou lama ou cocô de vaca. E depois senta e fica arrancando os cascos do dedão. Acho que o pé dele, mesmo sujo, é bonito.

Nesse dia, ia ter o esvaziamento do tanquinho. Um lago bem grande com água marrom, tipo terra cremosa. Todo mundo da fazenda, as crianças e os adultos, iam pra lá para pegar os peixes. Nesse dia não pensei para onde iria tanto peixe, só como eu poderia agarrá-los. Quando o trator chegou, metade da água já tinha ido embora do tanquinho. E as pessoas já estavam com o corpo metade enlameado. No começo não quis entrar: primeiro porque a areia movediça fazia parte de todos os meus pesadelos. E se eu pisasse e a lama me sugasse. E mesmo que alguém quisesse me salvar e me desse a mão, eu não ia querer, porque a força da areia movediça é maior, engole tudo, até uns 3 adultos de mãos dadas. E, depois porque eu ia sujar a minha cacharrel vinho. Os adultos nunca ligavam muito para as crianças e ficavam gargalhando entre eles. Se alguém de nós chegasse, eles automaticamente perguntavam: cadê fulana/o, vai lá brincar com ele/a que aqui é conversa de adulto. E um deles fazia algum comentário que eu não entendia. E todos riam. Os peixes enlameados começavam a saltar alto pra cima da lama e a gente tinha pouco tempo para agarrá-los joga-los na água dos grandes baldes. Uma parte deles iria virar comida, a outra seria devolvida para um outro lago. Meu primeiro peixe ficou meio segundo nas mãos e escorregou voltando pra lama. Foi uma sensação muito estranha. Aquela carne mole, viscosa, que não parava de se mexer. O Kiko estava no resgate do décimo peixe e já tinha colocado uns dois dentro da cueca  do Marcelo, o irmão mais velho. Os peixes não escorregavam da sua mão, parecia. Ele apertava os peixes no peito, sujando a camiseta branca que ficou cheia de marcas dos rabos. Eu queria aquela camiseta. Ia colocar num varal ao lado da minha cacharrel e o vento ia chegar alguma hora para elas ficarem dançando juntas. Eu peguei 3 peixes durante todo o dia. Tinha medo de apertar demais e matar. E isso acontecia também com passarinhos, massa de pão e crianças menores que eu. Eu não era de apertar forte e o Kiko dizia que eu era muito medrosa com tudo.

De ponta dos pés, meus olhos davam na altura da beira da panela. A gente estava esperando a água ferver para fazer o ensopado dos peixes. Toda hora eu ia na cozinha ver se a água já tinha fervido. Eu achava que sim porque já fazia um tempo que o fogo estava queimando o fundo da panela sem parar. Mas a Maria dizia que ferver começava com umas bolinhas pequenas embaixo e depois elas viravam grandes e estouravam em cima.  O tempo de fervura era igual ao tempo de viajar com os pais no banco de tras do carro, à aula de educação física, à noite de natal ou o meu irmão dentro a barriga da minha mãe. São coisas que nunca chegam e a gente fica com um sentimento de arranhar a parede para ver se passa.

– O Jesus, Maria, José! O bicho está vivo. – ouvimos o grito da Maria lá da copa.

Nessa hora, o Kiko estava me desafiando a morder uma pimenta bem vermelha que parecia de plástico. Mas com o berro, saímos correndo pra ver o que era. Um dos peixes da bacia ainda dava seus pulos e a Maria tomou um susto tão grande que não conseguia levantar da cadeira, se abanando com o avental e rezando, fezendo o sinal da cruz.

O Kiko pegou o peixe que ainda se chacoalhava e o apertou no seu peito, com cara de coragem forçada. E eu percebia isso porque a cada espasmo do peixe, o olho dele ficava mais esbugalahado que o do bicho. A Maria quieta, eu quieta. O peixe foi minguando, minguando, diminuindo os espasmos. Até que as batidas do coração do Kiko embalaram o escamoso para o paraíso dos peixes. Eu vi o Kiko tremer sem se mexer. Eu vi até uma lágrima que escapou rolando no seu rosto ainda sujo de lama, abrindo um caminho mais claro na sua bochecha. Como não sabia o que sentir, olhei a pimenta que ainda estava na minha mão e mordi com toda a força que eu tinha.  Fiquei ardendo muito, inteira, mas não gritei. E finalmente a água começou a ferver.

 

 

A melhor piada que eu fiz na minha vida

Marcel Souza

 

Estávamos no carro, eu, meu irmão, meu pai e minha mãe, chegando em São Paulo. Meu irmão do meu lado, meu pai dirigindo e minha mãe no banco do lado.

Era um Vectra, o carro. Lembro da sua porta, da maçaneta fosca, um pouco áspera, de plástico. Ela acompanhava o formato da porta e cavava um espaço onde entravam os dedos para puxá-la e abri-la. Eu lembro do botão da trava dessa porta. Preto e vermelho, igual um dedo com a unha pintada de vermelho. E nesta parte pintada tinha ainda uma textura granulada, mais acentuada, ela raspava e grudava no dedo com facilidade para você puxar. Para empurrar, você empurrava com a ponta do dedo em cima dela.

Se eu pudesse eu ficava puxando e empurrando aquela trava quantas vezes fosse possível. Era muito bom sentir aquele movimento repetido. Mas, claro, não podia. Se ficasse abrindo e fechando, como um monte de outros interruptores e botões por aí, como dizem os adultos, uma hora ia estragar.

Mas eu fiz isso, sim, algumas vezes escondido. As coisas não quebram tão fácil assim, não. E tinha uma finalidade aquilo, a indistinção entre aberto e fechado, em cima e em baixo, ou a própria indistinção da função daquele botão, eram muito instigantes. “Isso serve para travar”, dizem os adultos, mas você vai ver o que é isso e se depara com um dedo preto com a unha pintada. É inaceitável essa autoridade que eles têm para sair dizendo por aí com tanta certeza o que é e para que devem servir as coisas.

Não era só uma porta, uma maçaneta e uma tranca. Tinha toda uma mística do funcionamento daquela porta… A trava da porta do lado do meu pai, por exemplo, era especial. Quando ela abaixava, todas as outras abaixavam juntas, sem explicação nenhuma, e faziam um barulho ritualístico. “Drum”. Entrava, botava o sinto, “drum” e o corpo até vibrava junto com o carro se trancando.

Então, tudo isso também era verdade, para além da porta, da maçaneta e da tranca. Era verdade e ninguém falava o porquê.

É que este, assim como outros, são do tipo do saber que todo mundo sabe somente enquanto pensa “deve ser por conta disso ou por conta daquilo”, mas que, no fundo, no fundo, ninguém sabe bosta nenhuma.

Os adultos, inclusive, principalmente meu pai, se sentem quase ofendidos se você insiste em questionar eles por aí, por onde as coisas “devem ser”. Muitas vezes, diante dessas questões, eles tentam nos explicar “o que eles sabem”, que basicamente é uma parte de como as coisas são, que eles sabem justificar. A questão é que não é uma justificativa que nós queremos quando a gente sobe e desce a trava da porta mil e uma vezes, ou porque queremos saber como as coisas são de fato, o que queremos na verdade é saber como é que alguém pode dizer o que é e o que não é, como é e como não é: a onde, entre o que é e o que supostamente deve ser, os adultos pisam para se sustentar?

Não pisam. Na prática, o adulto flutua e com muita arrogância. Provavelmente porque ele foi encontrando com tantos “deve ser assim” por aí que se tornou um deles. Os adultos, eles não são alguma coisa com pé no chão tal como eles tentam parecer. Se tem pé no chão nessa história, só podem ser tropeços de um bêbado que o hábito camuflou em passos cotidianos do trabalho árduo. Os adultos escondem o que eles de fato são nos elevados valores morais desse hábito em que as coisas são como devem ser.

Mas devem ter razão para fazer isso, afinal é com eles que eu me sentia protegido, sentia que eles sabiam o que fazer com meu medo e qualquer sofrimento. Acho que o “dever” das coisas como elas “devem ser” dá uma espécie de amparo para que as coisas sejam tal como nós as conhecemos. O dever é a rodinha da bicicleta das coisas, eu diria, naquela época. Eu estava aprendendo a andar de bicicleta sem rodinha e vivia o drama de tentar descobrir como controlar aquilo sem cair. Naquela tarde, no carro, em São Paulo, eu elaborava essa situação na minha cabeça.

Eu tinha muito medo de cair, e essa, basicamente, era toda a questão. Não tem força que você faça que faz a bicicleta se equilibrar. Me intrigava aquelas imagens dos adultos andando tranquilos e despreocupados em suas bicicletas pelas cidades e pelos campos. De onde vinha aquela postura tão despojada na hora de se equilibrar?

Não era uma questão de força para mantê-la de pé, não adianta segurar com força, ela cai de qualquer jeito. Aparentemente, o medo era a chave da solução desse enigma. Eu tinha que tentar incorporar o estilo despreocupado, eu apostava.

Bom, mas isso não deu muito certo. A solução do enigma eu não descobri quando eu deveria – as boas soluções sempre vem quando elas já não são mais necessárias, não é? – e, além disso, quando eu descobri, já tinha me esquecido a grande lição da questão.

Eu caí, me arrebentei no chão. Fiquei triste e nem sei se doía muito. Fiz que doía, pois eu caí e lá estava eu fazendo o que devia fazer, me doendo, dando toda razão para os adultos.

Mas o meu pai, que me esperava do outro lado do morro, quando eu caí, ele riu e riu… e veio rindo me socorrer. Não correspondia de modo algum ao que eu queria que ele fizesse. Ele deve ter falado alguma coisa como uma lição de moral, na hora, mas o que ele estava mesmo dizendo com aquela risada era secreto, estava além do que ele queria dizer, guardado como um segredo naquele riso.

Eu estava encontrando outra criança ali, eu acho, que me dizia “as coisas não quebram tão fácil assim, não”. Todo aquele sofrimento e valor trágico que eu dava para o meu tombo, ele via nisso algo de habitual, cômico.

Chegando em São Paulo, estávamos no trânsito e nós no Vectra. Era um morro, tudo estava parado e pairava um silêncio dentro do carro. Meu pai, como um adulto, pensava em como as coisas deviam ser feitas no volante, minha mãe, outra adulta, observava se meu pai estava fazendo as coisas como elas deviam ser feitas no volante, meu irmão e eu esperando o momento em que…

– …aaaaaaaaAAAAaaaaaaa…

Tem um cara gritando. É um cara gritando em cima de uma bicicleta, ele tá pedalando e berrando.

Não tinha ninguém atrás, ninguém na frente. Era só alguém andando e gritando de bicicleta.

Minha mãe deve ter sentido a necessidade de explicar, porque falou dentro do carro: “Oia o bêbado. Deve tá bêbado…”.

Aquilo parecia atrapalhar o meu pai a entender como as coisas deviam ser no trânsito e ele não falava nada com cara de bravo no volante.

Eu e meu irmão ficamos olhando, intrigados. No silêncio, onde a explicação da minha mãe se desfazia no hábito, latejava a questão inquieta “Porque aquele homem estava gritando e andando de bicicleta na rua?”.

Eu pensei bem em como as coisas deviam ser quando se anda de bicicleta na rua sozinho e entendi a situação daquele moço: “Ele deve tá com medo de andar de bicicleta sem rodinha…”, disse com seriedade e sobriedade, em voz alta.

Meu irmão chorava de tanto rir. Ele teve que explicar para meus pais, logo em seguida, e eles riram bastante também. Na hora, eu não entendi o que aconteceu. Só fui entender bem mesmo o que eu fiz ali quando meu irmão já era um adulto e disse que aquela foi a piada mais engraçada que eu já fiz na minha vida.

 

 

Estação fantasma

Malena D’Elia Otero

 

A chegada dos jogos panamericanos na cidade tinha sido recebida com muito clamor. Na tarde que a tocha olímpica passou na frente de sua casa, Sofia ficou empolgada, tão empolgada que até tinha brincado com seus primos de ter sua própria tocha olímpica ateando fogo numa vassoura de palha e correndo pelo quintal.

Sofia sabia o que era uma partida de futebol ou uma competição de natação e não via menor graça em assistir a essas coisas. A abertura dos jogos vista desde a última fileira de assentos na arquibancada a fez sentir como quando observava as formigas caminhando pelo quintal. Mas a maior novidade que tinha feito brilhar seus olhos era a patinação artística. Ficava hipnotizada com aquelas roupas coloridas, a maquiagem purpurinada e a leveza com que os patinadores rodopiavam no ar. Desde então, Sofia tinha passado a sonhar com dançar sobre rodas com uma roupa de lantejoulas.

Numa tarde de sábado, ganhou de seus avós seus patins pretos com detalhes roxos. Um pouco diferentes dos que se usavam nas competições porque estes tinham as rodas enfileiradas. Sofia tinha escolhido o modelo de cadarços, já sabia amarrar e dar laço sem a ajuda de ninguém, diferente do irmão que usava o modelo de presilhas, preto com detalhes amarelo fosforescente. Aprendeu a andar sozinha naquela mesma tarde, dando voltas na garagem dos avós. Primeiro, segurando na parede e depois, pouco a pouco, soltando-se e cobrindo o espaço todo.

No sábado que ganhou seu tesouro, foi dormir com a promessa de estrear seus calçados rolantes no dia seguinte. Sofia gostava de dormir na casa desses avós. A casa era pequena e não fazia barulhos estranhos, como a dos outros avós que rangia durante a noite. Ao deitar, adormecia com a melodia do guarda que passava assobiando com um apito pela rua e acordava com a buzina do trem da manhã, que passava na estação a três quadras da casa.

A estação tinha visto dias mais gloriosos, o prédio que já tinha sido branco hoje estava coberto de manchas pretas de umidade e de pichações. As plataformas onde antes se amontoavam as famílias ricas que vinham aproveitar as férias de verão na praia, hoje passavam a maior parte do tempo desertas. A cidade tinha deixado de ser um polo turístico e era apenas passagem para os que seguiam rumo a outros lugares mais pitorescos. Os bancos de madeira se ofereciam como um lugar de descanso para os que não tinham onde morar.

O fim de semana na casa dos avós só era completo quando finalizava com uma visita à estação. Brincava com seu irmão numa antiga locomotiva de carvão que adornava sua entrada. Fingiam ser maquinistas ou passageiros rumo a lugares desconhecidos. Às vezes, coincidia de estarem lá nos horários que o trem cruzava a estação a todo vapor. Escutavam a sirene que anunciava a chegada e viam a barreira descer na avenida para impedir a circulação dos carros. O irmão então corria com o avô pra plataforma para sentir na sua cara o vento que anunciava a chegada do trem. Sofia nunca ia. Para sentir aquele sopro de liberdade no rosto havia um preço a se pagar.

A única maneira de chegar na plataforma era atravessar uma passagem subterrânea que a separava do prédio principal da estação. Não era permitido atravessar pelos trilhos. Algumas pessoas, num ato de coragem, o faziam e Sofia ficava arrepiada só de pensar nessa ideia porque a lembrava de uma cena do filme Tomates verdes fritos, que as primas mais velhas gostavam de assistir, na qual um rapaz ficava preso no trilho. E Sofia nem sabia que fim o rapaz tinha, porque era a hora que ela apertava os olhos, tampava os ouvidos e saía correndo da sala de TV.

Sofia tinha convicção plena de que aquela passagem era um portal no qual alguma coisa se deixava. Os poucos passageiros que dali vinham retornavam com caras cansadas e pés arrastados. Os que dali partiam chegavam ao outro lado sempre com os olhos cheios de lágrimas. Seu irmão e seu avô eram os únicos que pareciam indiferentes ao efeito daquela passagem. Deveria ser porque eles eram muito rápidos, velozes o suficiente para que a maldição não caísse sobre eles.

Uma escada íngreme abria o portal: uma boca gigantesca, monstruosa, tão escura que tornava a distância infinita. As vozes daqueles poucos que atravessavam o portal se multiplicavam. Sofia tinha certeza que eram, na verdade, as vozes dos seres que ali habitavam e que se deliciavam com as pobres almas dos que precisavam atravessar a passagem subterrânea. Esses seres suavam tanto que deixavam o caminho úmido e impregnado de um cheiro forte de xixi, que saía do túnel em baforadas azedas.

Uma única vez, quando não precisava de duas mãos para contar sua idade, Sofia tinha tentado se aventurar com o irmão. Tinha descido três degraus, com o coração pulando dentro de sua garganta, mas suas pernas curtas não tinham dado conta de acompanhar o irmão e quando ele sumiu na escuridão correndo, achou melhor escalar de volta à companhia da avó.

Naquela manhã, Sofia ia estrear seus patins no mundo real, quebrando as barreiras do conforto da garagem. Os avós haviam prometido levá-los para patinar em algum lugar amplo de pisos lisos. Sofia ainda não tinha sua roupa de lantejoulas, mas se via dançar, girar e pular segurando as mãos do irmão. Presa no seu devaneio artístico, Sofia não percebeu que caminhavam rumo à estação de trens, cada um carregando seus patins em mãos.

Quando se viu de frente ao portal das almas viajantes penosas, a garganta se fechou com o vapor que saía do túnel. Os patins começaram a escorregar das suas mãos encharcadas de suor. Sofia soube que as criaturas do túnel do horror tinham iniciado o processo de sugar um pouco de sua alma quando seus olhos se encheram de lágrimas como os dos passageiros que ela via partir e quando o avô, alguns degraus mais abaixo, chamou por ela e sua voz ricocheteou pelo espaço. As criaturas deveriam estar sedentas por sangue novo porque naquela manhã não havia pessoas atravessando o portal nem chegando de trem.

Então sua avó segurou seus patins e o irmão, sua mão. Dessa vez ele não correu e fez um gesto para tampar o nariz com a outra mão livre. Apertou os olhos como quando assistia à cena de Tomates verdes fritos. Confiou na experiência do irmão mais velho e se deixou puxar. Não abriu os olhos em todo o trajeto e atravessaram o túnel protegidos por seres divinos cujas vozes se assemelhavam a do irmão e a da avó. Quando achou que fosse desmaiar pelo esforço de correr sem respirar, o caminho foi ficando cada vez mais claro e um portal brilhante se abriu escada acima: o alvorecer das trevas da estação de trens. Renasceu na plataforma e respirou fundo quando o trem soprava a sua chegada.

Naquela manhã, a pista de patinação de Sofia foi a plataforma do trem. Ao som de apitos, sirenes e buzinas, Sofia e seu irmão rodopiaram no ar. Dançaram sobre o tapete liso da plataforma, empurrados pelos ventos dos trens que passavam rasgando a estação.

 

 

A curva Tamburello

Felipe Paparella Pessota

 

Luciano mirava hipnotizado o tapete em que estava sentado. A tapeçaria preenchida por uma série de losangos cinzas envoltos por uma moldura marrom rejeitava uma mancha e acolhia a criança de três anos. A mácula lembrava “uma borboleta?”. Alguém, num esforço de limpeza, espalhou o que quer que tivesse caído ali e dado asas à imaginação infantil. “Uma borboleta flutuando entre quadrados tortos!”. Não tinha certeza se foi da vez que vomitou depois de tanto girar no próprio eixo enquanto ainda engolia a janta. Ou se tratava de mais um episódio de descontrole da bexiga. “Tem uma bexiga dentro da gente?”.

Os gritos dos adultos na sala o despertaram da luta contra a própria memória e o excesso de imaginação. Levantou a cabeça a tempo de registrar o murchar de quatro risos: de seu avô Lucio, de seu tio Lucio Jr. e que todos chamavam de tio Juju, da sua mãe Lucia, e de seu pai Osmair. Todos levaram as mãos às têmporas, num movimento tão coordenado que mais parecera um passo de um espetáculo de dança contemporânea ou, para o pequeno Luciano, de um musical da Disney. Os quatro se espremiam em um sofá de dois lugares também marrom, em que os desenhos de costelas-de-adão por toda a extensão convidavam a borboleta para um voo além do tapete sisudo. Luciano ganhava horas passando o dedinho nos contornos das plantas costuradas. O avô Lucio, sentado à direita, revelou de relance uma fragilidade no olhar que Luciano tinha visto uma única vez. Mal sabia, e como poderia, mas seu avô perderia a vista do olho esquerdo em alguns anos por conta de um câncer; a imagem do espaço sem o globo ocular assombraria a mente de Luciano a cada coceira de pálpebras.

– Ah, olha lá, mexeu a cabeça! Tá tudo bem…, precipitou-se em dizer o tio Juju.

O olhar dos adultos conduziu o caminho do pescoço de Luciano para uma televisão de tubo em que um carro, um muito diferente daquele que via no caminho da escola, jazia imóvel entre destroços, fumaça e pedaços metálicos. Fitou de volta os responsáveis, que desataram a falar em uma algazarra de fim de mundo. Levantaram-se de suas posições e partiram para a cozinha deixando o pequeno entre sofá, tapeçaria e televisão. Os primeiros sinais de uma vida de enxaquecas tiniram. “Teria a mancha aumentado de tamanho?”.

Sabe-se lá quanto tempo passou naquele instante do domingo; para a criança piscou como a eternidade.

– Mamãe, para onde foi o Ayrton Senna?

– Foi encontrar a vovó.

– E para onde foi a vovó mesmo?

– Ela está numa fazenda muito grande, para onde vão todos os cachorros. Ela fica cuidando dos cachorros lá.

– Parece legal…

Luciano concordou com a cabeça e um sorriso se esforçou em contrair as maçãs (“maçãs?”) dos rostos (“dos rostos?”) de mãe e filho.

– Mas na tevê disseram que o Ayrton Senna morreu.

A parte do cérebro responsável pela memória do garoto não tinha desenvolvido a capacidade total de reter memórias e ele não tinha a lembrança de um momento com sua avó, embora a ausência da progenitora de sua mãe nos últimos dois meses ardia feito fogueira de lambidas capazes de provocar a extinção de todos os bonequinhos de chumbo do mundo, de uma vez só. O esgar no rosto de Lucia traduziu não a finitude da vida, mas o infinito da permanência. Para ele, não são a mesma coisa, uma vez que o fim de sua avó demorou três anos de sua vida e o infinito de sua falta, reconheceu, media o inconcebível. O menino derreteu, feito manteiga espalhada num pedaço de pão quente na chapa; e sentiu a mordida; os dentes trituravam farelos em vão; a língua desconhecia o gosto de algo que fora e não é mais; as pupilas contraíam por não identificar o amarelo brilhoso. Retrocedia em destino, do pão ao trigo, da manteiga ao bezerro. Luciano passou a questionar a capacidade elástica de um chiclete, pois sentia-se um PLOC! sabor tutti-frutti esticado da sua casa até a de sua avó: a maior distância conhecida. O chiclete se rompera quando disseram que ao morrer viramos estrela e, logo em seguida, aprendera ser impossível chegar perto de uma. Luciano desenvolveu raiva das profundezas do espaço sideral. “Existe vida em Marte? Ou é um planeta natimorto, como sua irmãzinha?”. E chorou ao assistir ao filme “Rei Leão”. ”Por que o Mufasa tem que ir pro céu e falar com o Simba como nuvem e minha avó não conversa comigo?”

Passou a duvidar de adultos e a acreditar em fantasmas. Descobriu a mentira e a inevitabilidade do sumiço de tudo e todos. Pela iminência da desaparição sorrateira, cada abraço ganhou contornos de despedida. Internalizou que não iria se indispor com ninguém, porque “vai que nunca mais vejo essa pessoa?”. E, assim, descosturou a vida pelo negativo, pela certeira dor da perda.

– Como a vovó morreu?

– O coração da vovó cresceu tanto que o médico errou na hora de dar uma injeção nela.

Nutriria uma relação com assuntos afiados; desde a tendência a cultivar triângulos amorosos até se impressionar com trigonometria; a se esconder em festinhas no momento de estourar balões com um palito de dente ou a evitar médicos com narizes aduncos.

– Cresceu de tanto amor?

– Um bichinho do barbeiro picou ela.

O menino encarou os adultos ao redor. Avô e pai carregavam, sob os narizes, um escovão cada em que as cerdas limpavam migalhas da boca; mas nenhum sinal de barba. Apressou-se para admirar o porta-retrato adormecido na escrivaninha: a fotografia: sua avó apertava um bebê enfiado em um macacão com estampas de planetas e estrelas. Os dois: no sofá marrom-terra-arrasada de vegetação sem borboleta, sorriam.

– Ela já estava bem fraquinha e ainda assim erguia você como se fosse um troféu.

O telejornal, dedicado a relembrar os pódios de Ayrton Senna e mostrar um país em prantos, exibiu um segmento sobre economia.

– Existe um plano real, pai?

Luciano culparia Ayrton Senna por apresentar o amargor da curva da memória; e morreria de Alzheimer.

 

 

Rabicó e o breu

Janaina Perotto

 

Eu ajudava a nonna com a louça quando escutei a cachorrada. Pela janela da cozinha, vi que um homem roliço se aproximava da casa. Andava vagaroso, os passos dilatados pelo sol do início da tarde e pelo volume que carregava debaixo do braço. Vi que era o Dominguinhos Zonta, dono da bodega atrás da igreja, onde os homens do distrito tomavam o trago depois da missa enquanto as mulheres esperavam no adro, entrecortando conversas sobre doenças e receitas com gritos para que nós, crianças, não sujássemos a roupa de domingo na estradinha de terra.

Espremendo os olhos, ainda com o pano de prato nas mãos, me aproximei do peitoril. Minha curiosidade contagiou a nonna e logo éramos duas com o nariz grudado na tela contra insetos.

— O que é que ele traz, o Zonta? — minha avó perguntou, certa de que eu enxergava melhor.

Pertinho da casa, o bodegueiro acenou com o braço que estava livre.

— Taaarde!

O peso que segurava junto ao corpo se agitou. Cinzenta, e roliça como o Zonta, a criatura se manifestou com um ronco juvenil.

— É um porquinho!

O assunto não era com a gente, porque o Zonta e seu companheiro passaram pela casa e sumiram em direção à serraria do nonno, descendo pela clareira atrás dos galinheiros. Eu fiquei ali, ainda alguns segundos, não porque o bicho me causasse espanto. Tendo a roça como geografia familiar, eu estava acostumada com animais. Mas é que os porcos não faziam parte da nossa lida. Segundo meus avós, davam muito trabalho: antes e depois.

— Posso ir lá ver?

A nonna disse que não, que fazia muito calor e que havia risco de cobras naquele horário. Além do mais, ela completou, deveríamos terminar o serviço da cozinha e criança não tinha nada que atrapalhar conversa de adulto.

Depois de um intervalo daqueles onde nada acontece, quando a louça já repousava nas prateleiras e o som da máquina de costura se misturava ao zumbido das moscas, eu esperava na varanda, alisando o gato esparramado sobre o piso de ardósia. Levantei quando avistei o Zonta subindo a clareira, equilibrando uma roda de carroça de feitio conhecido.

— Cadê o leitão?

Ele deu uma risada, refletindo o sol no canino de ouro. Suado, apoiou na roda com uma das mãos, levando a outra à lateral da pança.

— Ficou pra vocês, ora. A menina não me arruma um copo d’água?

Meu avô subiu para casa no final do dia. Ouviu um tanto de reclamações em dialeto e eu entendi que o problema era o porco. Ainda que ele respondesse em português, entender o nonno não era coisa trivial. Sem que nenhum adulto me explicasse o motivo de sua pouca interlocução, concluí que, de tanto conviver com bichos e ferramentas, as palavras dos homens já não faziam muito sentido para ele. De todo modo, encerrada a troca de farpas e a sopa de galinha, ficou decidido que o porco dormiria no sereno, preso por uma corda amarrada a uma estaca, até que improvisassem um cercadinho coberto.

As férias chegavam ao fim e eu logo retornaria para a cidade. Quando me despedi dos meus avós, o porco já tinha o seu chiqueiro, que não me pareceu muito diferente do abrigo das galinhas, feito com sobras de madeira, tábuas irregulares e telhas lascadas. Tinha também um nome, Rabicó, dado por mim e que ninguém adotou, porque certos bichos não precisavam de nome, foi o que me disseram. É assim que o final da infância começa, quando os adultos se esquecem de nos dissimular a realidade, ou quando nos ensinam a ver as horas, oferecendo a ilusão do controle sobre o tempo, com um conjunto de subdivisões abstratas, nas quais devemos acreditar. Mas o Rabicó veio um pouco antes disso, e me pareceu eterno o período que esperei até voltarmos à roça, na Semana Santa.

— Cadê ele? — quis saber, assim que cheguei.

— Tá quase no ponto.

— No ponto pra quê?

Não será verdade se eu disser que me assustei com a resposta. Nomear o porco foi apenas uma tentativa pueril de mudar o futuro. Já havia perdido conta das vezes em que vira a nonna torcendo o pescoço das galinhas que iriam para a panela. Nunca chorei, mesmo ao me lembrar de quando eram pintinhos, e até me divertia com os cocoricós ralentados conforme agonizavam e se despediam da vida. Depois, eu pedia para ajudar na limpeza, sentindo o estalo rouco das penas arrancadas da pele morta.

Disse a nonna que, de tão pesado, o porco não conseguia mais andar. Em pouco menos de quarenta dias, engordou tanto que descadeirou. Confinado na casinha de madeira, comia e comia, arrastando sua existência suína com o traseiro no chão.

— Quero ver!

E então fomos. Espiei pelas frestas entre as ripas, mas nada era nítido. Abri a portinhola do chiqueiro e lá dentro era a própria noite: Rabicó se misturava ao breu. Apenas dois pontinhos, cristalinos feito bolas de gude, devolviam o brilho da claridade súbita. Por um instante, tive dó daquela solidão e do seu destino, concretizado no Sábado de Aleluia.

No sono pesado de criança, não ouvi os berros do abate. No entanto, soube que, desde o amanhecer, meu pai, meu tio e o nonno ficaram às voltas com preparativos e finalidades para cada parte do animal. Do alto da clareira, vi quando lavaram os metros de tripa na correnteza do rio. Para a frustração das moscas, os cortes de carne repousavam sobre a mesa do porão, cobertos por um lençol de algodão cru. No terreiro junto à casa, perto do chiqueiro onde Rabicó viveu, um tonel metálico foi suspenso sobre a lenha. As labaredas aqueceram a banha – uma parte virou sabão – e comemos torresmo até o cair da tarde. Teve vinho para os adultos, suco de maçã para os pequenos e contação de causos que fizeram todo mundo gargalhar. De vez em quando, eu olhava para o chiqueiro. A portinhola inclinada balançava ao vento, chamando atenção com as batidas e a intermitência do escuro, agora vazio.

Quando chegou o Natal, comemos a última réstia de linguiças. Mas foi só no Dia de Reis que a nonna parou de reclamar do nonno, que, em vez de dinheiro, aceitou o porco do Zonta como pagamento pela roda de carroça.

 

 

Cicatrizes

Raquel Iantas

 

Enquanto irmãos e amigos  vizinhos brincavam de tiro ao alvo com seus estilingues, quebrando garrafas em cima do muro,  Irina acabava de descobrir, num canto do quintal, embaixo de madeiras apodrecidas, um ninho de ratinhos brancos. Pegou um deles com cuidado, era muito pequeno, as unhas rosadas e finas faziam cosquinha na palma de sua mão, o rabinho pelado parecia uma minhoca, olhinhos fechados. Ia procurar uma caixa de papelão para guardá-los, quando ouviu uma voz vinda da frente da casa. Num rompante de excitação, devolveu o ratinho para o ninho e correu em direção ao portão de entrada. É a voz da mãe, ela teve alta. Será que vai me deixar ficar com os ratinhos? Enquanto corre descalça, sente uma fisgada no arco do pé esquerdo. Chega ao portão ofegante, não tem ninguém. Confusa, vê a rua deserta. Como assim? Ouvi a voz da mãe, tenho certeza. Desolada, senta-se no chão e percebe o pé machucado, sangrando, com um corte profundo. Caco de garrafa, claro. Entra na casa pulando num pé só, pega uma camiseta velha para estancar o sangue e, mancando, vai buscar os ratinhos. Eles não estavam mais lá, na certa os meninos levaram. À noite, mostra para o pai o ferimento, vai com ele à farmácia, fazem um curativo, vê estrelas quando colocam o merthiolate, o pé fica cor de laranja, depois é protegido com gaze e esparadrapo. No meio da noite, volta a ouvir a voz da mãe, vira-se na cama procurando o sono, o pé lateja, a voz insiste, não consegue dormir. A irmã deitada na cama ao lado levanta-se, ela vai atrás. Na sala, descalça, de camisolão cinza, suada e descabelada, a mãe discutia com o pai. Irina corre para os braços da mãe. O  pai vai logo avisando: Amanhã bem cedinho, ela volta pro hospital. Pulou o muro feito ladrão. Para voltar para casa tem que ter autorização do médico. Irina começa a chorar, queria que a mãe ficasse, mostra o pé machucado, a mãe faz carinho, mas não teve jeito, no dia seguinte bem cedinho, ao acordar, a mãe já tinha ido embora. No pé esquerdo, ficou a cicatriz do dia em que a mãe fugiu do hospital. Essa rotina nunca mudou, de tempos em tempos a mãe era internada.

Agora Irina já estava crescida, ia sozinha visitar a mãe, precisava pegar dois ônibus para chegar ao sanatório, se orgulhava de nunca ter errado o caminho. Nesse dia, foi preparada, tinha na mochila dois maços de cigarros Continental, a mãe estava proibida de fumar, Irina levava os cigarros escondidos, a mãe dizia: Fumar é  minha única alegria. Chega um pouco antes do horário de visitas, teria que esperar. As instalações do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz  eram superlativas, a parte onde as visitas ficavam parecia um parque, com bancos nas sombras das árvores, roseirais floridos, grama bem cuidada. A ala dos internos lembrava um presídio, janelas altas com grades de ferro, mesas e bancos de cimento. O rapaz da portaria libera a entrada, a enfermeira reconhece Irina, e vai buscar a mãe. Irina senta-se no banco de cimento áspero e úmido, observa os visitantes que aguardam os parentes internos, todos adultos com o rosto vincado, olhar perdido, cabisbaixos. Irina levanta-se, estica o corpo, respira fundo, lembra-se dos cigarros, a mãe vai ficar feliz. Avista a mãe no fundo do pavilhão, que vem devagar arrastando os pés, o corpo curvado, acompanhada pela enfermeira. A filha vai ao encontro da mãe. Hoje ela está tranquila, vocês podem conversar no jardim.  Irina sente um alívio. Que bom, mãe, vamos poder ficar no jardim, as roseiras estão floridas, têm rosas de todas as cores. A mãe ergue a cabeça, olha nos olhos de Irina e sorri, um sorriso triste, os dentes falsos, a mãe usa dentadura. Irina busca a mão da mãe, segura firme, as duas seguem lentas, caladas, em direção ao jardim do hospital. Escolhem um banco afastado dos outros visitantes. Ao sentar, Irina percebe os calcanhares da mãe feridos, tingidos de merthiolate. Mãe, o que aconteceu com os seus pés? Bati, bati, bati muito, feito você quando era criança, me deitei no chão e bati com os pés até tirar sangue. Depois eles me trancaram no cubículo por dois dias, mas a enfermeira chefe disse que eu só ia sossegar com o eletrochoque. A mãe falava enrolado, a voz amortecida. Mãe, eu trouxe o cigarro que a senhora pediu. Minha bonequinha, só você para me dar essa alegria. Me dá, vou esconder na calcinha. Mãe, você está feliz? Então canta, mãe, canta a música da avenca.

 

Andamento

Waldirene Dal Molin

 

o padrão regular de todos os andamentos, seria o pulso de uma pessoa de bom humor, fogosa e leve, à tarde
José Miguel Wisnik

 

 

Entre a porta do sobrado e a rodoviária, quase 9 quadras. Todas as quartas caminhávamos ali entre as calçadas de grama e as casas sem muro. Eu e a Professora. Eu simplesmente amava aquele dia. A Professora morava em uma cidade vizinha e viajava meia manhã até nossa cidade azul. A Professora e seu Gibson madeira fosca. Na cidade de céu azul, eu, Guida e Tina vivíamos entre sorvetes e sonhos, grávidas de nós mesmas. A música, a Professora e o mar eram nosso único mundo possível. A Professora chegava quase sempre no final da manhã e almoçava na Pensão 12, da Sra Ruth. Um lugar um tanto apertado e triste, próximo ao Hospital Público. Nós não entendíamos porque a Professora almoçava ali, talvez fosse pelo sorriso da Sra. Ruth com formato de gaivota vermelha. A Sra. Ruth sempre usava batom vermelho. Sempre às quartas. Ela também era uma mulher roliça e divertida que costumava espalhar frases pela Pensão. Animava os parentes e os doentes, ela dizia. Minha mãe conta que a Sra. Ruth foi uma cantora bem conhecida na região dos Tranquilos. Um dia simplesmente parou, deixou um tanto de coração partido e veio para cá. Logo abriu a Pensão 12 e nunca mais tocou ou cantou no assunto. A Sra. Ruth era a nossa personagem favorita das histórias da minha mãe. Nossas aulas de violão com a Professora aconteciam no sobrado antigo e laranja construído muito antes de tudo. Eu não sabia exatamente onde era esse antes ou esse tudo. Mas a minha avó sabia. O sobrado ficava na Rua da Ladeira, com a melhor vista para o camaleão do céu. E era ali, sobre um chão de tacos e risos soltos que construíamos nossos mundos laterais para nos salvar de Freud.  Sem dias conectados eu descendia de uma longa linhagem de piscianas.  Eu, minha mãe, minha avó, minha bisavó, todas com sol em drama, devotas da Santa Sensibilidade Difusa e vivendo a nossa última encarnação. Daí a minha dificuldade com a parte racional da música e da vida. Guida e Tina eram os meus sapatos da razão e meu sentimento era que de sem elas meus pés virariam asas. Anos mais tarde descobri que eram exatamente as minhas asas que elas buscavam.  A Professora apareceu na nossa vida por acaso. Foi no primeiro sábado das férias de verão quando fomos até a Pensão 12 comprar sorvetes. Era uma daquelas tardes de pausa na tristeza do mundo, sabe?  Quando o céu costuma ficar lilás. A Sra. Ruth cantarolava bem baixinho limpando as mesas de toalha plástica com álcool. A Sra. canta bonito, disse a Tina. A gente adora música, acrescentou Guida. Eu queria saber tocar violão, falei meio que pra não ficar de fora da conversa, sem muita certeza desse meu querer. A Sra. Ruth então puxou uma cadeira pra pertinho da gente e sentou-se com um sorriso como se a vida lhe tivesse devolvido 20 anos. Por um instante cheguei a pensar que ela era outra pessoa. Quando ela soltou todo aquele ar preso no peito, fazendo até barulho, disse: Violão é? Pois olha meninas, eu conheço uma pessoa que mora em Serrinha e que anda precisando de trabalho. É um pouco longe, mas a minha aposta é que ela adoraria ensinar vocês. Que tal? Assim nasceu a Professora e a nossa última história antes da tempestade de areia – a vida adulta – nos levar pra bem longe da cidade azul.  A primeira aula abriu um espaço no meu coração que eu nunca mais deixei ocupar. Foi sobre o silêncio. Há sempre som dentro do silêncio. Exercitem esse paradoxo. Busquem o silêncio para ouvir a urgência dos seus agudos. O sangue, o coração, somos em tudo, música. Ela era o nosso John Cage ali, em carne e osso. Na medida em que fomos evoluindo e ganhando confiança, a Professora nos incentivou a escolher uma música para apresentar aos nossos familiares e amigas, no final de ano. Mas precisa ensaiar de verdade, de coração, ela nos alertou, senão vira só mais um clássico bate cartão das aulas extracurriculares. E a gente não quer isso, não é mesmo meninas? É claro que aquilo passou a ser a nossa razão de existência e muito rapidamente nos tornamos As Insuportáveis com assunto único, segundo a minha avó. O primeiro problema a vencer foi a escolha da música. Nós brigamos tanto que quase desistimos. Aí com a ajuda da Professora decidimos pensar em questões mais fáceis para nos ajudar a seguir, como a escolha do lugar. E assim foi que a Tina teve a ideia de nos apresentarmos na missa de domingo. A gente achou legal, embora a minha família nunca frequentasse a igreja. A gente era sem religião, dizia minha mãe. Escolhido o lugar, voltaram as novas confusões sobre a música. Um dia a Guida apareceu com a sugestão de “Gospel” do Rauzito. Sim, éramos todas fãs do Raul. Agitadinha e cheia de porquês, a música era a nossa cara. Depois a gente entendeu que a ideia não veio mesmo da Guida, mas de um tio dela que era o maluco beleza da cidade, um verdadeiro sósia do cantor.  Exceto por esse tio e pela Professora, não contamos para ninguém qual seria a música da apresentação. Nem mesmo para o Padre Lázaro, que ficou muito animado com o nosso pedido. Veio então o grande dia e a Igreja cheia, para alegria do Padre. Missa realizada, nos colocamos a postos próximas do altar e demos início a performance. Eu estava tão animada tocando violão enquanto a Guida e a Tina cantavam e batiam palmas no melhor estilo coral americano, até que decidi dar uma olhadela ao redor. O primeiro que vi foi um muro de braços cruzados vazado por algumas cabeças amarradas na indignação. O Padre e a mãe da Tina lideravam a muralha. Então corri os olhos à procura de algum afeto, quando então me deparei com a Sra. Ruth e a Professora. Nesse momento a passagem da música era exatamente “Por que que eu passo a vida inteira com medo de morrer? Por que que os sonhos foram feitos pra gente não viver? Por que que a sala fica sempre arrumada se ela passa o dia inteiro fechada? Por que tenho caneta e não consigo escrever? (escrever)”. Eram duas estátuas. Duas estátuas que choravam. Duas mulheres no efeito carne viva causado pela faca de uma letra, foi o que pensei muito mais tarde. Fiquei tão desconcertada que me perdi no violão.  Fui salva pelas meninas, que além de ultra ensaiadas seguiam alienadas na coreografia da dancinha, e pelo olhar da minha mãe, lá do canto da Igreja, como que dizendo: volta pro corpo querida, pro corpo do violão.  Agora aqui neste café, exatos 28 anos daquele dia, vejo a garçonete a limpar a mesa próxima. Ela cantarola baixinho. Não é tarde de céu lilás e tudo aqui é ruído. Fecho os olhos para exercitar o meu silêncio e quem sabe ouvir as minhas urgências.

 

 

Pinicando

Ana Luiza Nascimento

 

 

A campainha tocou e Bela correu em direção a porta, atropelando as pernas da empregada. Esticou-se toda para alcançar o trinco da porta, que se abriu para sua alegria.

“Bela, minha linda, sua mãe está em casa?”, perguntou uma senhora.

A menina deu meia volta sem responder, esbarrando em cheio nas pernas da empregada que vinha logo atrás dela. Desvencilhou-se delas e foi correndo pelo corredor.

“Mamãe, mamãe, você tem visita,” anunciou sorridente.

“É a revendedora da Avon, quer conversar com a senhora,” disse a empregada.

“Deus me livre, essa mulher parece que cria raízes cada vez que visita alguém. Diga que você se enganou, que eu já saí.” Enquanto a empregada ia dar conta do recado, a menina retorcia as mãos, nervosa, os olhos azuis marejando.

“Que foi, Bela?”

Sem responder, ela se atirou contra as pernas da mãe, abraçando-as com toda sua força.

“Você vai pro infeno, mamãe, vai adê no fogo do infeno.”

“Que história é essa, meu amor?”, disse a mãe, se abaixando para abraçar a filha, com todo o cuidado, para não perder o equilíbrio.

“Você mentiu, mamãe.” Silvia conteve a risada e abraçou a filha.

“Não, minha querida, mentira social Deus perdoa. Fique tranquila. E agora, vamos terminar de arrumar você para o nosso chá.” Sentou a menina numa banqueta e começou a colocar as meias brancas e curtas nos seus pés.

“O vestido pinica, mamãe,” disse, fazendo um muxoxo. A mãe sorriu: “E as minhas meias esquentam, as ligas apertam, a cinta me deixa sem ar e o sutiã sem fôlego. Mas não estou bonita?”.

“Linda, mamãe, linda.”

“E você também, assim que substituir essa carinha de o-vestido-pinica por uma de como-sou-bonita”. As duas sorriram enquanto a mãe terminava de calçar os sapatos e as luvas na menina, finalizando com o toque do chapéu de rafia.

“Fiquei bonita?” Bela se esforçou para manter seu melhor sorriso embora todo seu corpo pinicasse agora.

“Linda, minha pequena.”

 

 

Receita de brigadeiro

Renata Coré

 

Bianca subiu o mais rápido que pôde a ladeira de acesso à vila de seis casas, a calça de brim azul marinho do uniforme escolar segurando um pouco a pressa das pernas, a mochila rosa de borracha golpeando as costas. Tocou a campainha da terceira casa e, pelo vidro canelado da porta de ferro, viu quando a senhora baixinha, cabelos curtos e ondulados pintados de castanho escuro, terminando de secar as mãos na blusa de algodão florida, veio atender, trazendo com ela o cheiro do doce sendo preparado.

– Vocês deixaram lata de leite condensado pra eu raspar? Eu quero! – a voz quase não saiu.

– Depois que tomar banho e almoçar – a avó respondeu – E sua mãe disse que é pra fazer a lição de casa! – gritou para a menina que já passava para o banheiro, enquanto ela, Dona Juracy, voltava a se ocupar da panela no fogo evitando que o doce queimasse.

Aquela panela grande, curtida, de alumínio, só saía da despensa da casa de Bianca em duas ocasiões: nos finais de ano, para fritar bolinhos de bacalhau e rabanadas, e nas proximidades dos aniversários dela e de Daniel, para cozinhar beijinho de coco e brigadeiro – sem dúvida nenhuma o favorito dos dois irmãos.

 

– Eu enrolo as bolinhas, vocês vão passando no granulado – disse Dona Juracy, colocando sobre a mesa da cozinha o pirex oval cheio da massa de brigadeiro. Um de cada lado da mesa, Bianca e Daniel já tinham providenciado a montanha de forminhas abertas, reunidas em um Tupperware redondo. Sempre tarefa deles, assim como separar os celofanes, azuis desta vez. Não gostavam dessas atribuições, só serviam para fazer demorar o início da parte boa: melar os dedos com o doce.

A avó untou as palmas das mãos com manteiga. Com uma colher de chá, pôs-se a retirar bocados da massa para modelar as bolinhas marrons. A primeira esfera macia caiu sobre o prato espalhando levemente a superfície de granulado. Bianca estendeu o indicador direito e, com a ponta do dedo, fez a bolinha dar voltas, cobrindo-a com o confeito.

– Vó, sabe o que aprendi hoje na escola?

– O quê?

– Que a Terra gira em torno dela mesma!

– É mesmo?

– É sim!

Dona Juracy deixou cair a segunda bolinha no prato, e Daniel repetiu o gesto da irmã.

– Está vendo, Daniel, que coisa boa é ir pra escola? Daqui a pouco você também vai começar a estudar isso, e vai ficar cada vez mais inteligente. O menino sorriu.

– Vó, posso comer esse aqui? – perguntou, mostrando o brigadeiro que havia acabado de cobrir de granulado.

– Não, meu filho, ainda não. Ainda estamos começando. Bota no celofane e na forminha, tá bom?

– Vó, sabe o que mais eu aprendi?

– O quê?

– A Terra leva um dia pra dar uma volta completa em torno dela mesma!

– Nossa, é mesmo? Um dia inteiro?

Dona Juracy soltou mais um brigadeiro no prato de granulado.

– É sim!

Novamente, Bianca fez a bolinha correr até que ficasse totalmente coberta pelo confeito, e continuou girando-a pelo prato.

– Bianca, por que você ainda está passando esse brigadeiro no granulado? Ele já está mais do que bom.

– É porque nesse planeta Brigadeiro o dia dura pra sempre – divertiu-se.

– Arruma ele logo no celofane e na forminha. Os doces vão grudar se começarem a acumular no prato – disse a avó, deixando cair mais uma bolinha.

 

Em pouco mais de meia hora o primeiro tabuleiro já estava quase completo. Bianca olhou para aquele Sistema Solar feito de brigadeiros cobertos de granulado, acomodados em celofanes e forminhas azuis. Os doces tinham tamanhos irregulares. Uns saíam mais miúdos, outros saíam mais grandões. Ela gostava de esconder os maiores.

– Vó, os seus brigadeiros são os mais bonitos que eu já vi.

– Que bom, minha filha. Faço com muito gosto.

– Nas festinhas dos meus amigos, nunca vi mais bonitos que os da senhora.

– Nem mais gostosos, vó! Posso comer mais um?

– Se comer muitos hoje, no dia da sua festa quase não vai ter pra arrumar na mesa, Daniel. Você quer que a mesa apareça vazia nas fotos?

– Não tem problema, é só espalhar bastante – o garoto gargalhou.

– Vó, por que em vez de ir buscar calcinha e sutiã lá em Friburgo pra vender a senhora não vende brigadeiro?

– Sabia que eu paguei o casamento da sua tia vendendo calcinha e sutiã, Bianca?

– Com brigadeiro não dá? – quis saber o menino.

– O brigadeiro é pro aniversário de vocês.

– Quando eu for grande, a senhora vai me ensinar a fazer o seu brigadeiro?

– Vou sim, minha filha.

– Então eu é que vou fazer pro aniversário da senhora!

– Ei, eu também! – Daniel se apressou em dizer.

– E vou fazer pra sempre!

 

Muitos anos depois de ter ficado grande, Dona Juracy já não estava mais por aqui, Bianca ganhou da tia uma encadernação que reproduzia o caderno de receitas da avó. A de brigadeiro também estava lá, claro, mas fazia muito tempo que ela sabia de cor.

 

1 lata de leite condensado

(Minha avó usava leite Moça, então é leite Moça.)

 

3 colheres de sopa de achocolatado em pó

(O Nescau está pela hora da morte, mas que jeito?)

 

3 colheres de sopa de manteiga

(Manteiga eu tenho em casa.)

 

Cozinhar em fogo médio, mexendo sem parar até começar a desgrudar do fundo da panela. Transferir para um prato e deixar esfriar antes de modelar as bolinhas e cobrir com granulado.

(Bom é granulado mesmo, desses ordinários que a gente encontra em qualquer padaria. Nada desse negócio de chocolate importado que só vende em casa especializada.)

 

E até hoje é assim que Bianca prepara brigadeiro. Mesmo sem nunca mais ter encontrado um dos ingredientes da infância: a ingenuidade de acreditar que o mundo seria para sempre um lugar doce.

 

 

O beijo

Samira Murad

 

Todo dia, assim que a campainha estridente bate a hora do recreio, o menino dirige-se ao pátio, onde invariavelmente encontra, primeiro, o amigo e depois a irmã que, na hora do segundo sinal, vem lhe dar um beijo, como um pão cotidiano, antes que todos retornem às salas de aula, em procissão solene.

Sentados num dos bancos de cimento queimado em torno do pequeno jardim, centro nervoso do pátio, o menino e o amigo tomam o lanche. Para o amigo, lanchinhos variados, dependendo do dia; para o menino, sempre a mesma fatia de queijo prato enrolada numa folha de pão árabe, acompanhada de chá. Enquanto comem, os meninos observam, com olho de pesquisador, as saúvas que, ocupadas, sobem e descem o tronco liso da jabuticabeira, enquanto, à volta deles, as crianças correm, gritam, brincam, se divertem.

Terminada a refeição, o menino e o amigo levantam-se para dar, com precisão de relógio suíço e mãos cruzadas nas costas, três voltas completas ao pátio. Conforme andam, em passo lento, discutem os mais recentes documentários científicos que haviam assistido na Filmoteca Global. O percurso termina em frente às grades localizadas acima da quadra esportiva do colégio, onde o menino e o amigo observam as crianças que, ocupadas, correm para cima e para baixo, percorrendo a extensão da quadra.

Quando o sinal toca, o amigo vira-se para o menino, estende a mão e encaminha-se para a fila. O menino permanece, cronometrando – um, dois, três, quatro, cinco – a chegada da irmã.  

Naquele dia, o menino – sessenta, sessenta e um, sessenta e dois – nota que a gritaria das crianças diminui, como onda que se afasta da praia, conforme as filas se formam – oitenta e três, oitenta e quatro, oitenta e cinco – e deslizam pelos corredores – cento e oito, cento e nove, cento e dez. O menino permanece cravado em seu lugar – cento e trinta e um, centro e trinta e dois, cento e trinta e três – até não haver mais ninguém no pátio. Um suor frio escorre por suas costas e – cento e cinquenta, cento e cinquenta e um, cento e cinquenta e dois – lágrimas rolam por suas faces enquanto cambaleia feito bêbado sem rumo pelo pátio; ele não sabe fazer o caminho de volta à sala.   De repente – cento e setenta e oito, cento e setenta e nove, cento e oitenta – o menino sente um toque leve no ombro e estremece. Era a irmã que – cento e oitenta e três! cento e oitenta e três! cento e oitenta e três! – vinha dar o beijo reparador, guiando-o de volta ao mundo.

 

 

O caminho até a televisão e o videocassete
Bruno Cavalcante Pereira

 

Se Bernardo soubesse antes a respeito da missão que lhe imporiam, teria faltado ao encontro do Clube do Seya, de costume, aos sábados na casa de Teobaldo. Na verdade, era uma punição atribuída por Teobaldo e Eliomar, mas pactuada pelos três como em um contrato. Ao invés de papéis, cuspe: quem arremessasse mais longe o jato encorpado de saliva tal qual um estilingue escolheria a brincadeira; caberia ao derrotado da competição tomar providências a fim de facilitá-la. Bernardo não tinha jeito com tesouras, linhas e cola; sobrou para os outros dois meninos a construção das doze casas do santuário, em dois andares com caixas de papelão, como eles tinham visto no desenho animado dos Cavaleiros do Zodíaco. E naquela manhã, Bernardo precisaria cumprir o trato com a sua própria curiosidade e vergonha, sem adiamentos.

A missão era comprar uma revista acompanhada de fita em VHS pornográfica na banca, da esquina da casa de Eliomar a dois quarteirões do quintal de Teobaldo. A senhorinha da banca não reconheceria Bernardo – muito menos o denunciaria aos seus pais – porque ele fora poucas vezes brincar naquelas imediações (foi o que justificou Teobaldo com entonação instrutiva de um comandante de operação policial).

Bernardo se viu flagrado pela imperícia no espelho da puberdade: escorria suor das pernas, diante dos amigos, na impossibilidade de confessar seu desconhecimento a respeito de sexo aos onze anos de idade; Teobaldo e Eliomar, não. Ambos um ano mais velhos, já pronunciavam as palavras boquete e punheta com a mesma desinibição do leque de penas aberto do pavão azul.

Os sábados anteriores já anunciavam a intenção velada na prova de cuspe: método abandonado há tempos, mas resgatado por Teobaldo e Eliomar: dois votos contra um. Foram necessárias três manhãs e três tardes para construir o santuário de papelão, e enquanto montavam e colavam as peças, qualquer assunto entre eles se enveredava para o sexo (à exceção de Bernardo): a abertura das pernas da tesoura, a passagem da linha pela cava da agulha e a consistência da cola tenaz entre os dedos grudados dos meninos. Julgando-se o mais experiente do grupo, Teobaldo acreditava ser tarefa sua iniciar Bernardo nas atividades sexuais com o próprio corpo: precisava ir além das revistas de mulheres nuas, adquiridas no comércio informal durante o intervalo das aulas, numa sala desocupada por trás da cantina do colégio.

Sozinho e com os bolsos cheios de moedas, Bernardo atravessou o portão da casa de Teobaldo e andou até a banca de revistas sem encarar as pessoas nas ruas, talvez porque seu rosto anunciasse o motivo da diligência: será que as cenas de sexo reproduziriam o prazer evocado nas gargalhadas de Teobaldo e Eliomar?

As revistas e jornais pareciam uma cortina de retalhos: irregulares, diversas e cumpridoras de função. Parado ali, Bernardo seguiu com o mesmo protocolo – andava e não encarava a senhorinha da banca. O silêncio das mãos sobre as revistas em quadrinhos da Marvel e os olhos para cima feito um pêndulo esotérico eram uma artimanha cotidiana dos garotos daquela idade, já conhecida pela senhorinha. Ela puxou um caixote debaixo da máquina registradora tão rápido quanto deveria ser a escolha de Bernardo por apenas um combo (revista e fita em VHS), entre os recém-chegados. Escolheu e pagou por um cuja imagem da capa lhe lembrou uma mão que conduz um jambo-vermelho à boca.

Da revistaria e sob a cumplicidade da senhorinha, Bernardo seguiu com uma sacola de plástico preta para sua casa, não cumprindo com a parte final do acordo com seus amigos. Resolveu que assistiria sozinho às cenas de sexo; temia ser ele mesmo o objeto das risadas de Teobaldo e Eliomar. E era. Bernardo escondeu a revista e a fita em VHS no fundo falso da última gaveta do seu guarda-roupa e dali só sairiam na madrugada do domingo quando o caminho até a televisão e o videocassete se iluminasse por meio da lanterna.

 

 

Siri

Julia Antunes

 

 

Eu gosto quando o mundo está vermelho. É como se eu estivesse em Marte. O papai disse que Marte é um planeta de fogo. Minha pele seria tão grossa que eu não me queimaria. Ouviria barulho de milho estourando o tempo todo; eu só comeria pipoca, tudo o que fosse verde ficaria tostado rapidinho. Também poderia assar marshmallow. O futebol com bolas de fogo, já imagino a cara do Dudu quando a chuteira dele derretesse.

Cansei de ficar de olhos fechados no sol. A mamãe acha que me engana usando óculos escuros para fingir que não está dormindo. O livro caiu na areia faz uns minutos e ela ainda não pegou. Posso explorar aquelas pedras no fim da praia e ela não vai saber. Ontem as crianças da barraca do lado voltaram com um siri no balde. A alça do balde estourou quando elas estavam perto de mim. A água escorreu e o siri, quando sentiu que estava na areia, começou a cavar um buraco. Fiquei na dúvida se avisava as meninas onde o fujão tinha se escondido, mas uma delas começou a chorar e eu fiquei irritado. Quando alguém chora, minha garganta começa a coçar, então eu vou para longe. Homem não chora.

No dia em que eu comecei as aulas na escola nova, o vovô me buscou logo que acabou o recreio. Pela primeira vez ele deixou que eu escolhesse a música. Eu estava tão animado que demorei demais para me decidir e a gente chegou em casa antes de eu ouvir o final da melô do rato.

O vovô abriu a porta tão devagar que me deu vontade de dar um chute. Joguei a mochila no chão e ouvi um choro. Deve ser a mamãe falando com tia Camila no celular. Só que era um barulho diferente, como um engasgo junto com tosse. 

– Papai?

O papai olhou para o vovô:

– Oi, filho. O pai engasgou com um amendoim.

– Parecia que você estava chorando…

– Claro que não, homem não chora.

Demorou mais do que eu esperava para chegar nas pedras. Espero que a mamãe não tenha acordado. Imagina ela gritando meu nome e correndo de um lado para o outro, que vergonha. Eu uso um graveto para cutucar a areia bem perto das pedras e ver se aparece algum bicho. Faço um zigue-zague, uma ótima técnica para descobrir a casa dos siris.

Uma pata amarela se estica e volta a se esconder. Dou um passo para frente, achei você, há-há. A pinça é mais rápida do que o graveto e belisca meu dedo. Dói, dói, dói, dói. A garganta coça, prendo a respiração. Os olhos ficam molhados.

– Chico, Chico… Chico, cadê você?

A mamãe. A garganta arde. Homem não chora.

 

 

 

In memoriam

Christiana Beréa de Oliveira

 

 Catarina remexeu-se no banco duro da igreja. Do seu lado direito, Mariana. Do esquerdo, Sonia. A ordem de sempre.

Celina deixa, com certeza, muitas lembranças entre aqueles que a amaram.

– Vocês se lembram do dia da briga no carro? – sussurrou Catarina para as irmãs.

Às quatro e trinta em ponto, a porta da sala de ballet se abriu e lá de dentro brotaram pequenos seres saltitantes, trajando collants pretos sobre meias-calças cor de rosa – algumas rasgadas, outras imundas – sapatilhas, redinhas cobrindo coques desfeitos. O ambiente se encheu de vozes e gritinhos. Catarina foi a primeira a sair. De longe viu a mãe sentada em um canto com um livro entre as mãos. Ela nunca se juntava às outras mães, vivia calada, os olhos tristes. Ansiosa para dividir a novidade com ela, a menina correu em sua direção. Tinha certeza de que isso a deixaria orgulhosa.

– Mamãe, você não vai acreditar. Eu ganhei um papel na dança das borboletas!

Celina olhou por cima dos ombros da menina à procura das outras filhas.

– Onde estão suas irmãs?

– Devem estar vindo. Você ouviu, mamãe? A dança das borboletas é do grupo intermediário!

– Estou com pressa!

Catarina murchou por um instante.

– Peraí, vou chamá-las. – E saiu correndo de volta para a classe. Depois explicaria melhor.

Com o trio reunido, a mãe seguiu para o estacionamento do clube. Abriu a porta do Opala azul Danúbio e em ordem invertida de nascimento, como sempre faziam, as meninas foram entrando no carro. Mariana – seis, Catarina – oito, Sonia – onze.

– Posso ir no banco da frente hoje, mãe?

– Já conversamos sobre isso, Sonia.

– Mas todo mundo da minha classe já está andando no banco da frente! Só você que não deixa!

– Todo mundo não é minha filha – respondeu a mãe com a frase padrão e fechou a porta. Sonia fechou a cara. Ah, como queria ser filha de outra pessoa.

Antes de dar partida, Celina checou as garotas pelo espelho retrovisor. 

– Vamos ver se hoje conseguimos chegar em casa sem brigas, certo? Estou sem paciência, entenderam?

– Eu tô com fome – queixou-se Mariana na cadeirinha.

Já com o carro em movimento, a mãe abriu a bolsa, puxou um pacote de biscoitos de chocolate e, esticando o braço, entregou-o às filhas.

– Tomem. Mas é pra dividir, hein?

Mariana pegou o pacote, mas Sonia o arrancou da mão dela.

– Deixa que eu abro.

Catarina, sem esperar que o carro saísse do estacionamento, retomou o assunto que fervilhava em sua cabeça.

– Então, mãe, uma das meninas do grupo intermediário vai se mudar para o Rio de Janeiro e a Cristina me escolheu para o lugar dela!

– Vai, Sonia, me dá a bolacha – choramingou Mariana.

– Sonia, sua irmã está com fome.

– Tá, mãe. Já vou – respondeu a mais velha, mal-humorada.

– O que foi que você disse, Catarina? – perguntou a mãe.

Os olhos da menina se iluminaram.

– Ganhei um lugar na dança das borboletas.

– Ridículo isso! – disparou Sonia. – Onde já se viu? Você ainda é do grupo básico. Deviam ter escolhido alguém do avançado.

Catarina esperou uma defesa da parte da mãe, mas ela não veio.

– Você é burra ou o quê, Sonia? Essa dança é muito fácil para o grupo avançado. Você está é com inveja.

– Eu quero mais uma bolacha! Mãe, a Sonia não está dividindo direito!

– Inveja de um grupo de borboleta?!

– Me dá a bolacha – disse Mariana, esticando-se para pegar o pacote.

– Ai! Você me arranhou, sua pirralha! – gritou Sonia, puxando o cabelo da mais nova.

– Larga ela, Sonia! – berrou Catarina, protegendo a menor.

Em alguns minutos, já não era possível distinguir as vozes das meninas entre gritaria, choro, tapas e empurrões.

Numa freada brusca, o carro parou.

– Desçam.

Silêncio.

– Desçam.

As três garotas entreolharam-se assustadas e miraram os olhos gelados da mãe no retrovisor.

Mariana começou a choramingar. Olhou para fora e viu um garoto passando com uma caixa de chiclete na mão. Será que a mãe dele o tinha colocado para fora do carro também?

Catarina apertou a mãozinha rechonchuda de Mariana. Precisava acalmar a irmãzinha, ela ainda não entendia aquelas crises da mamãe. Aquilo não era nada. Precisavam só manter a calma, costumava passar logo.

– Mamãe, a Mari está com medo. Vamos para casa.

– Eu não estou brincando. Eu avisei, não avisei?

Sonia olhou alarmada para a irmã do meio. E se dessa vez a mãe tivesse pirado de vez? O que fariam? Aquele gosto ruim que conhecia tão bem invadiu sua boca. Gosto de desgosto. De sede de uma mãe como todas as outras.

Os minutos passaram. Talvez tenham sido apenas segundos. Como se de dentro de uma bolha, ouviam buzinas ao longe. Catarina lembrou-se de fazer a prece do Anjo da Guarda. Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador… Mariana apertou forte o pacote de biscoitos contra o peito. Sonia fechou os olhos e colocou a mão no trinco da porta. Talvez ficasse melhor sem ela.

O som de partida do carro pôs o mundo em movimento de novo. A mãe ligou o rádio e, cantarolando, continuou o trajeto para casa.

Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna.

– Eu quase saí do carro naquele dia – murmurou Sonia.

– Duvido que você tivesse coragem – respondeu Mariana baixinho.

– Ela nunca teria deixado a gente sair – disse Catarina pegando as mãos das irmãs. – Eu tenho certeza.

 

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