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TRILOGIA DA DIABA

14/05/2021

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A Trilogia da diaba é composta por três exercícios de escrita realizados por participantes da oficina Literatura Potencial, conduzida por Brune Carvalho no último mês de abril na Escrevedeira. A proposta foi reescrever um excerto do conto ‘A diaba e sua filha’, de Marie Ndiaye, escritora francesa publicada no Brasil pela Cosac Naify, em tradução de Paulo Neves. As versões são de autoria de Clara Varandas, Michelle Misiji e Fernanda Machado, formando esta trilogia espontânea de reescritas. Boa leitura!

 

 

Excerto original de ‘A diaba e sua filha’, de Marie Ndiaye

 

Uma diaba ia de casa em casa e perguntava:

– Onde está minha filha? Não a encontro. Vocês viram minha filha?

Essa diaba tinha um rosto agradável de olhar. A pele era escura e o olhos, brilhantes. Batia nas portas ao anoitecer e perguntava:

– Alguém sabe onde está minha filha?

E a pessoa que abria a porta à diaba via seus belos olhos, um tanto úmidos, que brilhavam na penumbra, a face graciosa e as roupas muito limpas.

           

A pessoa que já não tinha medo de abrir a porta à noite já se preparava para sorrir e tentar ajudá-la, quando de repente seu olhar pousava nos pés dela.

E a pessoa que se esquecia de ter medo ao escancarar a porta na penumbra ficava então gelada de terror ao ver que aquela que buscava a filha à noite não tinha pés, mas cascos.

Eram pequenos cascos negros e delicados como os de uma cabra, separados por uma fenda alongada.

Imediatamente a porta voltava a bater e todas as luzes da casa se apagavam.

 

***

 

COMO NASCEM OS CASCOS

por Clara Varandas

 

Uma filha ia de casa em casa e perguntava:

– Onde está minha diaba? Não a encontro. Vocês viram minha diaba?

Dizia ela a quem abrisse que a diaba tinha um rosto agradável de olhar, e que seus olhos brilhavam como a noite, negros e infinitos. Batia nas casas e perguntava:

– Alguém sabe onde está minha diaba?

E a pessoa que abria a porta não entendia como uma menina tão jovem vagava sozinha, procurando algo que não poderia compreender. Ao ver seus olhos chorosos, espaçosos no rosto cansado, ofereciam a cadeira na cozinha, e em algumas outras vezes um leite morno, para que a menina esperasse seja quem fosse que ela procurava.

A menina encontrou a diaba muitas vezes. Algumas vezes em mulheres tristes, em casas geladas, com mãos nodosas que tentavam se aquecer em poucos trapos. Outras em casas onde crianças choravam sujas, em vezes que homens excessivamente gentis lhe abriram a porta. Encontrou tantas vezes a diaba que formou um casco ao redor dos ombros, e não tardou para que evitassem lhe abrir a porta.

Mas nunca mais tornou a ver o olhar daquela que era a sua diaba. Olhar aquele que era doce e úmido, como os de uma mãe.

 

***

 

POBRE DIABA

por Michelle Misiji

 

Uma diaba ia de instituição em instituição e perguntava:
– Onde está meu filho? Não o encontro. Vocês viram meu filho?
Essa diaba tinha um rosto desagradável de olhar. A pele era escura e o olhos, perturbados. Batia nas portas até o anoitecer e perguntava:
– Alguém sabe onde está meu filho?
E a pessoa que abria a porta à diaba via seus olhos aflitos, um tanto áridos, que se submetiam à penumbra, a face exaurida e as roupas muito simples.

A pessoa que já não tinha prazer de abrir a porta, ainda mais à noite, já se preparava para fingir que tentaria ajudá-la, quando de repente seu olhar pousava na fotografia que resistia ao suor das mãos dela.

E a pessoa que se esquecia de ter medo de escancarar sua penumbra na porta ficava então mais gelada e sem pudor ao ver que aquele que a mãe buscava não tinha direitos, mas “cara de suspeito”.

Era um pequeno culpado negro e desagradável como uma cabra.

Irrevogavelmente separados pela fenda alongada do abismo social, imediatamente a porta voltava a bater e todas as luzes da instituição se apagavam.

 

***

 

O EXECUTIVO E SEU TRIM

por Fernanda Machado

 

Um executivo ia de casa em casa e perguntava:

– Você teria um trim para me emprestar?

Esse executivo tinha um rosto agradável de olhar. A pele era escura, olhos e cabelos brilhantes. Batia nas portas ao anoitecer e perguntava:

– Você teria um trim para me emprestar?

E a pessoa que abria a porta ao executivo via seus belos olhos, que brilhavam na penumbra, a face graciosa, pele bem tratada e o terno impecável.

Diante de tamanha elegância, a pessoa não tinha medo de abrir a porta à noite e já se preparava para sorrir e tentar ajudá-lo, quando de repente seu olhar pousava nos pés dele.

E a pessoa que se esquecia de ter medo ao escancarar a porta na penumbra ficava então gelada de terror ao ver que aquele que buscava o trim à noite não tinha sapatos, mas saltos prateados.

Saltos prateados com pequenas pedras negras, delicados como os de uma princesa e unhas pintadas, longas demais.

A porta começava a se fechar devagar para não escancarar o obsoleto e uma voz sem graça acompanhava: desculpa, não tenho, boa noite.   

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