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CABEZAS CORTADAS – UMA ‘VIAGEM BORGEANA PELA OBRA DE SHAKESPEARE’

06/08/2021

Maria Alzuguir Gutierrez

           O cineasta Glauber Rocha utilizando como lentes escritores, principalmente Jorge Luis Borges e William Shakespeare, em meio à acirrada discussão em torno da literatura latino-americana nos anos 1960 e 70, é o foco do texto abaixo, da pesquisadora e professora de cinema Maria Alzuguir Gutierrez.

           Neste mês de agosto, Maria oferece o curso ‘Alegorias de Nossa América – Cinema e Literatura na América Latina’ na Escrevedeira. Boa leitura!

 

           Em Cabezas Cortadas, filme de Glauber Rocha de 1970, há um ditador foragido que espera e prepara sua morte enquanto um profeta infunde esperanças no povo. Não há um relato linear de fatos, mas uma atmosfera onírica em que se superpõem períodos históricos. A narrativa é condensada, com a exibição de uma série de tropos ibero-americanos num espaço imaginário que poderia situar-se em qualquer lugar ou em lugar nenhum, e, ainda, estabelecendo todo um diálogo intertextual com a literatura da América Latina.

            Chama atenção a proximidade da produção de Cabezas Cortadas com a data de publicação de três dos mais célebres “romances de ditadores”, O Recurso do Método (de Alejo Carpentier, 1974), Eu, o Supremo (Augusto Roa Bastos, 1974) e O Outono do Patriarca (Gabriel García-Márquez, 1975), e sua afinidade com esse livros, tanto nos temas como nas propostas formais. Alguns estudiosos  procuraram diferenciar os romances centrados no tema da ditadura, os chamados “romances de ditadura”, dos “romances de ditadores” propriamente ditos, escritos nos anos 1970. Nos primeiros, que remontam ao século XIX, o ditador não aparece como protagonista, mas se denunciam as consequências de sua tirania. O escritor tem um propósito extraliterário, mais do que estético. Esse romance panfletário, no entanto, teria contribuído para fixar o tipo do ditador de ficção, que permaneceu muito tempo como caricatura, personagem sombra1. Destes livros para os romances de ditadores dos anos 1970, rompe-se, segundo Ángel Rama, a distância entre o poderoso e os homens governados, que o contemplam a partir de fora. Agora os narradores se instalam na consciência da personagem2.

            Glauber dizia que seu filme era uma “viagem borgeana pela obra de Shakespeare”, na qual ele havia encontrado um “método” capaz de “teatralizar a história”3. Como ressalta Jan Kott, nas peças de Shakespeare, a história não se modifica, descreve círculos, sendo sempre a luta pela coroa, “a disputa pelo poder é despojada de toda mitologia e mostrada em estado puro”4, numa imagem mesma da história, ou do Grande Mecanismo. Shakespeare dramatiza a história pela condensação, desembaraça-a da descrição, da anedota, quase do relato. Concebida como vazia de sentido, ciclo atroz, ela é a grande protagonista da tragédia.

            Shakespeare está presente em outros filmes de Glauber, mas em Cabezas Cortadas isto é ainda mais evidente. No filme, todo detalhe foi suprimido, ficamos somente com a queda do déspota, como no Rei Lear, uma queda física, espiritual, corporal, social. Além disso, há a forma grotesca com que a personagem do ditador se apresenta. Em um estudo sobre o bardo, Jan Kott afirma que, contemporaneamente (o livro é de 1961), o grotesco se ocupa dos problemas, conflitos e temas da tragédia, que é “um julgamento sobre a condição humana, uma medida do absoluto; o grotesco é a crítica do absoluto em nome da experiência humana frágil”. Por isso, conclui o autor, “a tragédia conduz à catarse, enquanto o grotesco não oferece nenhum consolo”5.

            Já no caso de Borges, vemos que Glauber toma sobretudo a ideia de uma “poética da leitura”6, concebendo a criação artística como leitura, a arte como “discurso composto de discursos”7 e construindo sua originalidade na “afirmação da citação, da cópia, da reescritura de textos alheios”8, assim como faz o escritor argentino. Glauber compartilha com Borges a liberdade na atitude com relação à tradição a que está destinado o artista das “margens”.

            A ideia de uma “viagem borgeana pela obra de Shakespeare” leva a pensar no debate que se fazia contemporaneamente na América Latina sobre Caliban, uma personagem da peça A Tempestade. Em 1971, o poeta e ensaísta cubano Roberto Fernández Retamar publicava o ensaio “Caliban”. De acordo com ele, em 1969, a figura dessa personagem havia sido reivindicada por alguns escritores antilhanos, entre os quais Aimé Césaire, com seu Uma Tempestade – A partir da Tempestade de Shakespeare, Adaptação por um Teatro Negro, em que Caliban se torna guerrilheiro negro e Ariel, a representação do intelectual, é um escravo mestiço de Próspero.

            Para Fernández Retamar, não há metáfora mais acertada para a nossa situação cultural, nossa realidade, do que esta de Caliban, que aprendeu a língua de Próspero para maldizê-lo. Ele se pergunta o que são nossa história e cultura senão a história e a cultura de Caliban. No entanto, ao propor a personagem de Shakespeare como nosso símbolo, se dá conta de que “tampouco é inteiramente nosso,” também se trata de uma “elaboração estranha”, mesmo que a partir de nossas realidades concretas. Mas, ele se questiona, como eludir completamente esta estranheza? E então argumenta através de outro exemplo: o termo mambí – palavra imposta pejorativamente pelos inimigos, mas reivindicada pelos independentistas cubanos, que tomaram com honra o que era injúria. Para Retamar, esta é precisamente a dialética de Caliban.

            Do traçado histórico das diversas retomadas da personagem shakespereana, Retamar passa a um elogio ao anti-imperialismo de Martí e deste ao ataque contra alguns escritores latino-americanos contemporâneos, nos quais parece enxergar servidores de Próspero, como Ariel. Em outro texto, de 1986, “Caliban revisitado”, Retamar situa o seu ensaio original no contexto em que foi produzido. Era o momento da polêmica em torno da revista Mundo Nuevo e do “caso Padilla”, quando, indignados com o mea culpa do poeta cubano Heberto Padilla, após um mês de detenção, uma série de intelectuais fizeram, a partir de Paris, uma carta ao governo de Cuba questionando o fato. De acordo com Retamar, estas foram algumas das chispas para a redação do primeiro “Caliban”. Já no seu texto de 1986, parece querer fazer justiça a Borges, resgatando sua importância, a despeito dos ataques feitos no ensaio original, quando havia dito que o escritor argentino, por fazer da escritura um ato de leitura e afirmar que nossa tradição está na Europa, seria um “típico escritor colonial”, e suas obras, o “testamento atormentado de uma classe sem saída”9.

            De Borges, Fernández Retamar passava a atacar o trabalho de Carlos Fuentes, La Nueva Novela Hispanoamericana, de 1969, que imporia o esquema estruturalista ao estudo de nossa literatura. Para Retamar o auge da linguística, quando a vertente estruturalista parecia ter “napoleonizado” as outras ciências sociais, tinha razões ideológicas, e a historicização implicada no estruturalismo seria “própria de uma classe que se extingue”10. Retamar rejeita a perspectiva de Fuentes, segundo a qual “somente a partir da universalidade das estruturas linguísticas se pode admitir, a posteriori, os dados excêntricos de nacionalidade e classe”11.

            Vemos assim que, entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, na América Latina, a ideia de uma reapropriação “anti-colonial” de Shakespeare, Borges e o estruturalismo estavam no centro das discussões. Glauber, então, com sua “viagem borgeana pela obra de Shakespeare”, intervinha no debate de maneira prática. O cineasta havia dito que seu filme era estruturalista. O filme toma de Shakespeare a estrutura do “grande mecanismo”: um poderoso em decadência, a chegada de um Messias – e se resume a isto. Não há precisão de que ditador é esse, de onde vem ele exatamente etc., e sobre o pastor/messias muito menos, eles não têm história, não têm um antes e um depois, são mera encarnação de uma estrutura que se repete. E exatamente esta forma é que expressa o seu conteúdo, porque o filme é sobre esta repetição como algo que nos caracteriza. Por isso o ditador Diaz é sempre o mesmo, que voltou e voltará. Glauber usa o estruturalismo, a intertextualidade (procedimentos que costumam confinar a leitura no âmbito estrito do texto), mas para tratar da história, de uma história cuja tendência é repetir-se.

 

1 Ver o texto de Jorge Castellanos e Miguel A. Martinez, “El dictador hispanoamericano como personaje literario”, em Latin American Research Review, 16/2, 1981.

2 Conferir o ensaio de Ángel Rama, “Los dictadores latinoamericanos en la novela”, do livro La novela en América Latina: panoramas 1920-1980, publicado pela Procultura/Instituto Colombiano de Cultura em 1982.

3 A citação encontra-se na tese de Maurício Cardoso, O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-1974), realizada na FFLCH-USP em 2007.

4 Jan Kott, Shakespeare nosso contemporâneo, Editora Cosac Naify, 2003.

5 Idem.

6 A ideia está no livro de Emir Rodríguez Monegal, Borges: uma poética da leitura, Editora Perspectiva, 1980.

7 Beatriz Sarlo, Borges, un escritor en las orillas, Editora Seix Barral, 2007.

8 Idem.

9 Conferir texto de Fernández Retamar, “Caliban”, em Todo Caliban, publicado pela Ediciones Callejón em 2003.

10 Idem.

11 Idem.

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