O breve ensaio abaixo, da escritora e tradutora Isadora Sinay, fala sobre a forma como nos livros de Philip Roth as questões individuais, ligadas à intimidade, se cruzam de modo muito particular com a política e os acontecimentos históricos.

Neste mês de julho, Isadora dá um curso na Escrevedeira sobre a obra de Roth, a partir da leitura acompanhada de Nêmesis, seu último romance publicado e que condensa os principais temas existenciais desdobrados ao longo de toda a sua extensa obra. Boa leitura!

 

Desde o início da sua carreira, Philip Roth se mostrou interessado em explorar o que compõe uma identidade e quais os conflitos que um rótulo, nacional, étnico, ou de gênero, pode trazer para um indivíduo. Seu livro de estreia, Adeus Columbus e Outras Histórias, publicado em 1959, apresenta uma coleção de judeus contemporâneos que precisam negociar suas situações econômicas, profissionais e amorosas com a herança histórica do judaísmo. Essa negociação era sempre permeada por paradoxos e conflitos e marcada principalmente pelo abismo entre a experiência dos judeus americanos e europeus nos anos do pós-guerra.

Esses descompassos, tudo aquilo que os rótulos identitários acabam deixando de fora ao tentar achatar experiências históricas múltiplas, acabariam por se tornar seu principal tema, um ponto de partida em torno do qual gravitam suas outras preocupações. É o embate entre o social e o íntimo, o pessoal e o histórico que organiza sua ficção.

Um comentário frequente sobre a obra de Roth é que ele apresenta homens que são atropelados pela história, protagonistas cuja ideia que possuem de si, de sua vida e do futuro é completamente desorganizada pelo correr dos acontecimentos mundiais. Esses personagens acreditam que sua identidade é algo passível de construção e controle, algo de que eles tomam conta, e o desenvolvimento das narrativas acaba por lhes provar que quem eles são é muito menos o resultado de escolhas pessoais que a manifestação das correntes históricas. Por exemplo, o próprio Philip Roth só pôde ser quem era – um escritor judeu renomado – porque os movimentos históricos levaram seus avós a fugir da Rússia czarista e ele, por sua vez, a nascer nos Estados Unidos de 1933 e não na Alemanha nazista.

De forma semelhante, Coleman Silk, de A Marca Humana, vê seu destino determinado pela história do racismo americano. Ele pode até tentar desafiar seu lugar histórico, e de fato o faz, mas a alienação de si mesmo exigida por esse movimento acaba enredando-o em sua própria fuga. Nesse sentido, a história na ficção de Roth se parece muito com os deuses das tragédias gregas.

Tratar Philip Roth como um escritor fundamentalmente político e cujo tema principal é a relação entre o individual e o histórico pode parecer estranho, uma vez que o autor ficou mais conhecido por abordar aspectos da esfera da intimidade, como o sexo e o envelhecimento. No entanto, esses dois elementos são em geral abordagens distintas do tema do corpo, que aqui se entrelaça com essa identidade política e histórica. O Complexo de Portnoy, tido como seu livro mais escandaloso, quando olhado de perto, é uma análise das neuroses encarnadas no corpo judeu em um momento de passagem do antissemitismo estrutural para uma aceitação social mais generalizada. Portnoy inscreve a história no seu corpo de tal forma que ao relatar sua obsessão com as loiras meninas cristãs americanas afirma com todas as letras que é “o passado delas que quer penetrar”. E em uma virada tanto cômica quanto óbvia acaba impotente no Estado de Israel. De forma parecida, em A Pastoral Americana, é por ter nascido com o corpo que nasceu, o de um deus grego de Nova Jersey, que Sueco Levov pode se vincular ao sonho americano da forma como o faz.

Em Philip Roth o sexo e o corpo, embora lidos com frequência como temáticas em si, são preocupações que servem de lente perfeita para explorar a forma como o indivíduo vive a história. Se o corpo é a materialização desses processos sociais, os relacionamentos amorosos – e, por consequência, o sexo – são onde dois processos distintos se encontram e entram em embate. Mais uma vez, em nenhum lugar de sua obra isso é mais claro que em O Complexo de Portnoy, quando a tentativa de Alex de transar com uma garota israelense descamba para uma disputa ao mesmo tempo erótica e ideológica.

É curioso que um escritor tão acusado de ignorar os movimentos do feminismo de seu tempo tenha a base de sua literatura tão próxima de um dos lemas políticos feministas: o pessoal é político. Para Roth, o corporal também é.

Imagem: Otto Dix, Matrose und Mädchen (detalhe)

NO MUNDO DE PHILIP ROTH

16/07/2021

Isadora Sinay