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ANTOLOGIA ‘POESIA NA PONTA DOS DEDOS’

27/10/2021

Vários Autores

A oficina Poesia na Ponta dos Dedos, coordenada por Luci Collin na Escrevedeira durante o mês de agosto, gerou uma série de poemas realizados pelos participantes ao longo de quatro encontros. Parte deles foi apresentada ao final da oficina, num encontro de leituras aberto e gratuito, transmitido ao vivo, via Zoom.
Apresentamos a seguir uma nova seleção dessa produção, incluindo alguns poemas visuais, que compõe uma boa amostragem da variedade de temas e técnicas da poesia contemporânea. Boa leitura!

 

 

ALDEMIR SUCO 

Organizando pedaços de mim em potinhos

 

Escapa pelos dedos o desossado tempo

Diluído ao vazio da sala sem alarme

Descamando horas gotejando momentos

De pedaços soltos meus pela tarde

 

Um pedaço de mim ficou ilhado na cama

Outra parte sorteia panelas para o almoço

E no chuveiro lavando a mente em chamas

Para com o silêncio voltar a trocar socos

 

Eu era o alvo e a tristeza me atingiu

Mesmo que se atire pedras no rio, ele não deixará de passar

As palavras que eu guardei, por baixo da língua, o buraco na sala engoliu

E agora só resta saber

Qual é o pedaço que por aquela porta vai me atravessar.

 

***

                                                                          ANA CAMILA VEIGA

 

escorredor de louças

frágil

escul

tur

a

 

dois rostos

de cerâmica

num torso

de plástico

 

pia da cozinha

 

área

sujeita às cheias

imprevisível

 

frigideira de teflon

 

antiaderente

e manda lembranças

das últimas

dez refeições

 

***

DANIELLE RESENDE

 

Cão

o homem agachado na calçada
de pedras portuguesas

na esquina da farmácia dos bem-nascidos

sob a marquise recebe
os pingos da chuva
 
que o cimento não suporta

o ser de cócoras barba longa
boina rota e andrajos
assiste sequioso às criaturas

um centauro de olhos arregalados
abraçado às próprias pernas
ávido pelo olhar alheio

semblante de criança encharcada

súbito
dá-se conta de um cão
o cão estanca a sua marcha

o cão enxerga o homem

o gigante de pernas impotentes
fita o cão à sua frente

aspira obstinado e
a plenos pulmões late

em júbilo

 

***

                                                                          DEISI JAGUATIRICA

 

Planeta Terra

 

Já passamos por reinados e hippies.

De trajes opulentos a andrajos

coexistimos todos: yupie, hipsters

Diversos talentos nos tantos gajos

 

De estilos e beca já surgem selfies

Usurpadores causam desarranjos

ecológicos, para que  expies

tamanha ferida sem os arcanjos

 

amparando destruição e furtos

de cada pedaço da tua carne

Gaia querida, não entre em surtos

 

Desvencilha-te com graça e charme

dos parasitas que se fazem surdos

e trabalham para teu desencarne

                                    

***

                                                                            EDERSON NUNES

  

Hiato

 

Como num raio

Se eu estivesse dentro de um

Me aproximo e penso

Na pata da garça

Na graça da pata

Na raça da vaca

Na vista da praça

 

Como um trovão

Se eu fosse o som de um

Passo por perto e toco

As curvas da estrada

As ondas da barca

As sombras da mata

Os goles da taça

 

Como uma sílaba

Se eu fosse apenas vogal

Me separo em hiato

Na luta da língua

Na rota da fala

Nos ecos da sala

No verso que acaba.

 

***

                                                                             ELIANE R. COSTA  

 

PERTENCIMENTO

 

Como estâncias 

e árvores

gente contada

nas casas 

nas ruas

signos

que habitam

memória e projeto

letra e prece

voz que fala

na pele

na boca

d’eus.

 

 

Um minuto

 

Conecto um minuto

mundo  mágico,

autofágico:

lama exposta,

Brumadinho primeiro, 

latifúndio de covas depois.

No mundo  sensível,

espiamos para trás.

 

                                                              ***                                                                         

  FLAVIO DE SOUZA

 

 

DUETO EM FUGA

(sobre poema de Luci Collin)

 

Poesia

         Poetas

é a sonora frase

         são cantores mudos

que em si

         que em lá

o silêncio

         se calam

                profundo

                  o mundo

 

segundo em que

         primeiro

se percebe

         se pronunciou

que a ordem

         a palavra e então

      rasa

               a luz

do mundo

         na Terra

não é sequer

         e toda a vida

           parecida

                 em seguida

com a ordem

         nada mais foi que

    maior

            a primeira

                 da vida

                  poesia

 

 *** 

                                                                                                                                                             LIDIANNE SEABRA

 

Vida Viva!

 

Menstruar é poético

é Morte e Vida

Vida e Morte

 

severa a alguma menina

não há cúmplice

nem vacina

tem mulher que morre num dia

Sangra e Ressuscita

 

Menstruar é poético

é Morte e Vida

Vida e Morte

 

severa por alguns dias

mas mulher sempre ressuscita

se não menstruasse

ninguém nascia

precisa renascer

para continuar a vida

 

Menstruar é poético

é Morte e Vida

Vida e Morte

 

severa sina de nascer menina

não se morre todo dia

reverencio

o sangue que gera

humana vida

 

Menstruar é poético

é Morte e Vida

Vida e Morte

 

severa sangui (o) fício

faz parte do organismo vivo

cíclico feminino

útero pré – parado

ávida não fecundação

da vida

 

Menstruar é poético

um pouquinho de morte

sangui (privi) légio

na sorte que mantêm a Vida

Viva

 

                       *** 

M. N. SOARES

 

Era prelúdio de primavera 

 

Com meus brotos navios

Singrei o desconhecido

No azul safira dos céus

Antecipei sem saber

Os rumos que tomariam

Minha vida e obra

Meu tronco machadado bastou

Para o desvelo do cerne

De todos os segredos

Na direção de mim mesmo,

Todos os épicos

Toda lírica

Todos os dramas de minha existência

A falta de proporção de meus dons

A extensão de meu destino não estabelece rima

Possível só num reconhecer dos limites

Circunscritos neles

Ramalhetes de eternidade

Faziam festa na duração do tempo

Embalados pelos ventos e ondas

Pela sede de muito mais.

 

O trabalho árduo que terá sido escrito

Aguardando que eu me abra

Que não hesite em reparar

Em vasculhar

Com a obsessão da criança que procura

Por seu brinquedo predileto

Com o afinco dos amantes

De livros

Perambulando pelas bibliotecas do mundo

Na busca por pergaminhos escritos há séculos

Com seus dialetos de simetrias ocultas

Como que escritos para mim no tempo de agora

Sem explicação

E ainda assim recolhendo alguma compreensão

Cala no fundo do coração perdido

A busca por respostas

            Por novas questões

            Por novas pulsações cintilando o inefável

Ainda que pairando sobre a face do abismo.

 

Adentro no baú redondo

Encontro, enfim, meus brinquedos e sonhos

Ideias, versos, melodias abandonadas

Compilações, devaneios, esquemas

Memórias esquecidas

Beleza intuída com apreço e calma

Por toda luz concentrada nesse tronco machucado

Reconheço

Atemporal magia do sol que me banha 

E versifico como ser livre

E canto a liberdade da glória dos filhos de Deus

E não cesso de falar em ocasião oportuna.

 

*** 

                                                 RICARDO UHRY

 

Amores citadinos

 

Em família, vinte e um momentos: pai, mãe e irmãos

e ela santa, um anjo das Missões, meu primeiro amor citadino. Desgosto pelo calor, mais que amor,

quatro moradas, um tormento sulino

 

Por nascimento tornei-me vassalo de ações

Um concurso banca empregador libertei-me

Para Ijuí e uma faculdade em que encontrei

em apenas três momentos um amor avassalador

 

Logo meu amor voou e meu ser alçou

Em direção ao meu terceiro amor citadino

Foz das águas do Iguaçu e do calor

em que vivi aprendi e ensino por sete momentos

 

Dos mares das fronteiras paraguaias e argentinas

o canto da sereia curitibana escutei o quarto amor citadino atraiu todo minh’alma até que alcei, pelos ares

repousei, descortino, por doze momentos

 

Sentia falta do campo e libertino logo descobri

Uma soberana fazenda, de quem me tornei súdito

apaixonado de a encontrar nos fins de semana

Sem conhecer a cidade que seria o quinto amor citadino

 

Alma andarilha não sossegou e desafios levei

Ao quinto amor citadino, a Capital Federal

a conhecer de perto o deserto tropical

Encantador pelo qual não me apaixonei

 

Depois de quatro bons anos brasilienses

Compartilhando a cidade curitibana, com toda minh’alma

voltei todo ao braços de meu amor avassalador

amor por eternidade. Curitiba é minha praia citadina.                                         

                                                         

***

SIMONE ROSA

 

Um poema bem leve desliza,

é líquido, sonha.

Um poema muito solto  corre

escorre na lágrima livre

transborda desfeito,

é palavra desdita.

 

 

Imprevisto

 

Depois da chuva

o sol chega mais perto, 

verte os segredos do chão

em cores líquidas do céu.

Depois do banho, cheiro
de chá, minto, é café

e os beijos, nossos beijos.

 

Depois do solo aceso,

a toalha jogada no caos,

sopra, é quase vento.

 

Um dia, um dia de verdade,

antes de hoje, adivinho as vozes:

deixou vestígios em nossas línguas.       

 

                                                  ***                                                         

                              TECA MASCARENHAS

 

A ROSA TÓXICA DA ETIÓPIA oculta

mais dialética do que todo o vento

abrasado que geme nas savanas

 

de rubras vestes e poucas carnes

ostenta bocas despojadas

almas despidas

e espinhos que se incrustam

nos pés descalços

 

enquanto o sangue fecunda a terra usurpada

e tinge de púrpura o sinistro devir

a água doce que lhe aveluda o corpo

faz exaurir mananciais

e no sumidouro envenena

peixe e sereia mãe-d’água e acácias engole

gente e bicho vomita

fome

e mata

 

é majestosa

a rosa tóxica da Etiópia

mas não serve de alimento

não devolve ao pasto o almíscar

nem perfuma as mãos crispadas do ultrajado plantador

 

tampouco as alvas luvas do senhor

lhes disfarçam ou inocentam as escarlates digitais

 

***

                                          VINÍCIUS SOARES

 

I.

Dissecar a palavra animais
a gaiola de gaia
e encontrar

O tigre-da-tasmânia antes de 1936 . fungos micorrízicos que fizeram plantas ancestrais se moverem sobre a terra . as últimas onças que se empanturram da cerveja que escorre do gado . o gado abatido no prato . a levedura que faz o levain . o gorila Harambe sacrificado no zoológico de Cincinati . a bactéria que coloniza o estômago . o tardígrado enviado ao espaço sideral em busca da cadela Laika . o vírus que reina com coroa e impõe silêncio ao mundo . o pinguim niilista do filme de Herzog . a tartaruga Jonathan, com 189 anos completos . O humano que olha para o gato que dorme em cima do poema

O mundo não é o que pensamos

 

 

II.

Cidade erguida
no aço da esperança
do eterno retorno da diferença

Coração sistólico sem diástole
entre-lugar do caos e da ordem financeira

Espera dócil o chicote do progresso
escondida atrás de um nome indígena
de uma língua morta ou esquecida

Presa a um único mundo
cava cega seu ocaso

Acelera esquenta repete
acelera esquenta repet
acelera esquenta repe
acelera esquenta rep
acelera esquenta re
acelera esquenta r

 

Clique aqui e conheça os poetas participantes

 

POEMAS VISUAIS 
POR 1. ÁLIDA ZEBALLOS; 2. INES SABER; 3. KENZO SUZUKI; 4. MARIA INES MOLL; 5. MARI LUCIA BALDISSARELLI ↓

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